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O milenar objeto de ciência e arte

Peter Schulz (*) | 07/06/2021 08:30

O gosto de cada um pela ciência pode ter início longínquo. No meu caso, uma experiência marcante na adolescência foi a caixa de papelão, furada de um lado e um papel de seda, cobrindo um retângulo recortado, no lado oposto. Era mais um exemplar da câmera obscura, o objeto mais do que milenar do título acima. Um amigo e colega de ginásio, Renato Feres (depois ainda colega do colégio e faculdade) tinha acesso ao improvisado laboratório fotográfico de seu irmão mais velho. E aí acompanhei-o na aventura. No lugar do recorte na caixa coberto com papel de seda, colocávamos papel fotográfico. Quanto maior o furo, menos nítidas as imagens, sempre invertidas, de acordo com a óptica geométrica, ilustrada na primeira imagem abaixo. E a grande pergunta: quanto tempo deixaríamos o furo destampado para gravar uma imagem razoável do mundo exterior à caixa e assim fotografar a cena? Qual o melhor tamanho do furo na caixa? O material de revelação e fixação era por conta do irmão do Renato, o papel fotográfico por conta das nossas mesadas. Estávamos brincando, mas no fundo aprendendo a fazer ciência e fotografia, desde montar a câmera, até revelar as fotos. Depois de um tempo, dispersivo como sou, desviei a atenção para outras brincadeiras. Meu companheiro de fotografia, muito mais metódico, seguiu em frente e chegou a construir câmeras fotográficas de “verdade”.

Câmeras obscuras são milenares, como já mencionado: um efeito observado primeiro em ambientes fechados com uma fresta por onde passava a luz do lado de fora. A segunda imagem aqui reproduz uma gravura do século XVII, em que um pintor usa um “cômodo obscuro” para auxiliar no seu trabalho artístico. Mas estou me adiantando nessa longa história, pois o ambiente fechado com uma fresta por onde passaria luz poderia ser também uma caverna. Essa possibilidade da “caverna obscura”, a sugestão da imagem do pintor olhando a projeção em vez da paisagem real, aliado ao fato de que Aristóteles já se ocupara do problema, leva-me à sedutora ideia de que a câmera obscura não seria só objeto de ciência e arte, mas também da filosofia, inspirando o mito da caverna de Platão. Mas isso são só, até onde eu sei, conjecturas, vamos ao que é documentado, mas não a todos os documentos, pois a história é farta.

O erudito árabe Ibn al-Haythan, em seu “Livro de Óptica”, descreve suas experiências com câmeras obscuras. Esse cientista do século XI, conhecido também como Alhacen, é precursor no uso do método científico e suas contribuições sobre cores e visão influenciaram seus sucessores por centenas de anos. É sempre bom lembrar essa efervescência pouco reconhecida da ciência na Idade Média. Pulando vários capítulos dessa história, chegamos ao comecinho do século XVI e os cadernos de Leonardo da Vinci, com sua precisa descrição de como a imagem projetada é invertida. Na sua descrição (decifrada só no final do século XVIII, pois Leonardo escrevia espelhado) ele compara o olho humano com a câmera obscura, não sei se teria sido o primeiro, precisaria ler, como Leonardo o fez, o livro de Alhacen para checar. Em todo caso, o século XVI assiste a uma explosão de ideias e aperfeiçoamentos, desde o uso de espelhos e lentes para melhorar a imagem, até as propostas das primeiras câmeras “portáteis”.  As aspas se devem ao que entendemos por portátil hoje em dia, pois o portátil da época era mais um cômodo desmontável e transportável. A proposta era do matemático alemão Friederich Risner em sua obra “Opticae thesauru” (1572), comentando justamente o trabalho de Alhacen. Um exemplo dessas “câmeras portáteis” aparece no livro do polímata Athanasius Kircher, “Ars Magna Lucis et Umbrae” (A grade arte da luz e sombra) de 1645. Portáteis mesmo, em um sentido mais moderno, para usos em ciência e arte só no século seguinte.

O grande astrônomo Johannes Kepler, em 1604, foi quem cunhou o termo “câmera obscura”, usando para observar o Sol (observação direta poderia cegar os olhos), sendo talvez o primeiro a ver uma mancha solar, mas que ele confundiu com o planeta Mercúrio. Kepler também teve a ideia de que seria um processo no cérebro que desinverte a imagem captado pelos olhos, as nossas mais preciosas câmeras. Não tardou a surgir a ideia de usar o telescópio, inventado na mesma época, com “projeções obscuras” para perscrutar melhor a superfície solar: invenção do helioscópio. A ideia fora de Christoph Scheiner já no começo do século XVII, o mesmo astrônomo que também construiu uma câmera do tipo caixa: finalmente algo portátil (!), ainda que incômodo para os padrões de hoje. Pois bem, àquela altura do campeonato, surgiam câmeras obscuras portáteis com lentes e/ou espelhos para desinverter as imagens. Ainda na década de 1620, o poeta Constantijn Huygens (pai do grande físico, matemático e astrônomo Christiaan Huygens) comprou uma dessas e sugeriu aos seus amigos pintores que a usassem para auxiliar nos detalhes e proporções de desenhos. E não demorou muito para que começasse a ser construída o mais importante capítulo do uso da câmera obscura na arte, no ateliê de um dos grandes gênios da pintura: Johannes Vermeer, cuja precisão dos detalhes impressionam desde o século XVII e há fortes evidências de que são devidas ao auxílio tecnológico com início na idade média, graças a um sábio árabe.

Acelerados que vivemos no século XXI, impressiona-me a ebulição dos desenvolvimentos da ciência em seus primórdios. No entanto, até aqui, misturaram-se principalmente matemática, física, astronomia e arte. O século XVIII traz para esse time o estudo do corpo humano, com a “Osteographia”, o grande livro de anatomia de William Cheselden de 1733[I]. O objetivo do cirurgião inglês era conceber um atlas anatômico atraente e... o mais preciso possível. Os desenhos de esqueletos anteriores eram ainda imprecisos nas suas proporções, por maior que fosse a atenção naquilo que os olhos do desenhista prestassem. Cheselden deu um salto qualitativo usando a câmera obscura, para conferir à anatomia dos ossos, a precisão de Vermeer em sua arte.

E no século XIX, à coleção de conhecimentos em torno da câmera obscura, juntou-se também a química com as películas de material fotossensível sobre vidro - os primeiros filmes -, que, colocados numa câmera obscura, deram origem às máquinas fotográficas, cada vez menores com o tempo, construindo nossa percepção contemporânea de portátil. E elas sobrevivem, as câmeras obscuras, sem a química dos filmes, mas com a microeletrônica fotossensível dos nossos celulares. Não parece, mas o princípio óptico ao fazer uma selfie é o mesmo daquele que começou a ser estudado em detalhe por Alhacen no início do século XI.

É fácil começar a brincar com câmeras obscuras, crianças do século XXI ainda se encantam com elas. E é o encanto da ciência que não podemos esquecer, assombrados pelos ataques à ciência do momento. Se perdermos esse encanto em fazer em ciência, brincando ou nos laboratórios das universidades, perderemos o sentido do que tanto precisamos defender.

(*) Peter Schulz é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira.

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