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O mundo pós-Covid, distopia ou solidariedade?

Roberto P. Guimarães (*) | 24/01/2022 08:30

A eclosão da pandemia provocada pelo “novo” coronavírus (na verdade, uma nova e mais agressiva mutação do Corona) coloca em evidência o protagonismo de ao menos dois possíveis cenários extremos para a sobrevivência da vida no planeta. De um lado, o retorno a uma distopia de sociedades confinadas no isolamento, sem vínculos de sociabilidade e com o predomínio de trabalhos terceirizados, subalternos e precarizados em matéria de redes de proteção social como as que caracterizaram a evolução da humanidade no último século. No extremo oposto, poderemos ser testemunhas do renascimento de uma sociedade verdadeiramente ambiental, social e eticamente sustentável, como a que preconiza a agenda internacional desde a publicação do Nosso futuro comum, em 1986.

A viagem de volta à distopia de uma sociedade fragmentada e desprovida de humanidade pode parecer a mais provável, em especial à luz da experiência histórica passada.

De fato, desde 11 de março de 2020, quando eclodiu a pandemia, enquanto 42,6 milhões de trabalhadores solicitaram auxílio-desemprego, 1% dos bilionários norte-americanos viram a sua riqueza acrescida em mais de US$ 565 bilhões. Como resultado dessa dinâmica perversa no nível mundial, apenas 26 bilionários acumulam uma riqueza superior à metade mais pobre da humanidade. No caso específico do Brasil, dados recentes revelam que 705 mil homens possuem renda superior à de todas as 33 milhões de mulheres negras.

O documento oficial apresentado pelo Brasil à Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92) já assinalava que “em situações de extrema pobreza, o indivíduo marginalizado da sociedade e da economia nacional não tem nenhum compromisso para evitar a degradação ambiental, uma vez que a sociedade não impede sua própria degradação como pessoa”. Fazendo eco ao consenso mundial sobre esse aspecto, a própria Resolução 44/228 das Nações Unidas que convocou a Rio-92 afirmava com inusitada clareza que “pobreza e degradação ambiental encontram-se intimamente relacionadas”.

Já no cenário pós-pandemia mais otimista, seria inaugurado um novo modelo de organização social e de acumulação que, em bases solidárias e de afetividade, permitiria superar diversas forças motrizes da globalização atual. Desde a distópica mercantilização da natureza e dos seres humanos que levou a uma sorte de “uberização” geral do planeta e à transformação de cidadãos em meros robots do consumo online, sem qualquer relação com as suas necessidades, individuais e coletivas, de sobrevivência material, espiritual e de materialização de uma ética verdadeiramente planetária e entre gerações.

A emergência da nova “economia do conhecimento” permite tentar colocar em prática um truísmo das últimas décadas, considerando que o futuro de nossas economias, de fato de nossas sociedades, passa necessariamente pelas capacidades de transformação baseadas na exploração do conhecimento acima de mercadorias ou serviços. A nova economia do conhecimento requer, no entanto, o fortalecimento tanto dos bens públicos como dos bens comuns.

Um futuro mais promissor convida a desvendar o enigma de Mona Lisa. Durante anos permaneceu envolto em mistério o sorriso da Gioconda retratado por Leonardo da Vinci. A interpretação mais próxima da verdade é revelar a capacidade de o gênio Florentino de perceber movimentos sutis antes que estes se manifestassem. De fato, foram necessários mais de quatro séculos para comprovar o que já constava dos escritos de Da Vinci, que as libélulas voam com quatro asas, as da frente erguidas e as de trás abaixadas.

A metáfora utilizada aqui sugere que, por trás do sorriso, encontra-se a empatia, muito mais do que a interpretação popular do “colocar-se no lugar do outro”, um movimento mais profundo, a capacidade de sentir pelo outro suas próprias emoções e sentimentos. Em outras palavras, uma forma racional e objetiva de experimentar na própria pele o que o outro está vivenciando. O que um cenário Mona Lisa projeta é um franco processo de reversão das tendências atuais em prol da diminuição das brechas de desigualdade e de exclusão, o que requer de um novo marco de políticas públicas, que coloque o ser humano no centro do processo de desenvolvimento, que considere o crescimento econômico não como um fim, mas como um meio para alcançar maiores níveis de bem-estar socioambiental, que proteja a qualidade de vida das gerações atuais e futuras e que respeite a integridade dos sistemas naturais que permitem a existência de vida no planeta. Este novo padrão estará necessariamente orientado por uma nova ética de desenvolvimento em que os objetivos econômicos estejam subordinados às leis que regem o funcionamento dos sistemas naturais e que obedeçam também aos critérios de respeito da dignidade humana e de melhoria da qualidade de vida das pessoas. Sendo assim, os cenários mais otimistas com as possíveis soluções à crise atual de civilização terão que ser encontrados no próprio sistema social e não em alguma mágica tecnológica ou de mercado.

Em resumo, o cenário mais promissor pós-Covid é um que outorga primazia à chamada “economia do cuidado”, que oferece o indispensável amálgama ético para o respeito da dignidade humana e dos membros menos favorecidos ou francamente marginalizados ou excluídos da sociedade. Representa, em suma, o império da justiça socioambiental, tanto sincronicamente como entre gerações. Não cabe dúvida que a luta pela materialização do sorriso de Mona Lisa justifica aunar todas as forças para almejar esse impossível e resgatar o caráter intrinsecamente humano da sociedade. Um mundo no qual valha a pena fazer parte.

(*) Roberto P. Guimarães é Ph.D em Ciência Política.

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