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O potencial educativo do Carnaval e as suas relações com as experiências negras

Ana Paula Reis (*) | 20/02/2023 13:30

"Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês
Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasis que se faz um país de Lecis, Jamelões
São verde e rosa as multidões"

Esse trecho do samba-enredo “História para ninar gente grande”, da Mangueira, não só rendeu o campeonato dos desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro de 2019 para a agremiação, como também evidenciou e bradou, num dos maiores eventos realizados no mundo, os nomes de personalidades fundamentais que marcaram a história do Brasil. Ainda que não reconhecidos por grande parte da população brasileira, Mahins, Marielles, Lecis, Jamelões são nomes de pessoas que neste samba representam a comunidade que é basilar à construção social, histórica e cultural do Carnaval brasileiro. Essa é uma das razões que faz essa festa ser um lugar de afirmação das experiências negras no Brasil.

Além desse lugar de afirmação, pertença e também de resistência das experiências negras, o Carnaval evoca a produção de conhecimentos, valores e histórias que fazem emergir o potencial educativo que também nele se inscreve. Ao bradar nomes de heróis e heroínas negros e negras, abordar a história e a cultura africanas e afro-brasileiras, apresentar narrativas que reflitam sobre a estrutura racista na nossa sociedade, enaltecer a dinastia preta, homenagear artistas negros e negras da cultura popular brasileira, contar sobre divindades africanas desconstruindo estereótipos e visões racistas sobre as religiões de matriz africana e visibilizar pontos de resistência cultural negra, entre tantos outros exemplos que aqui poderiam ser citados, o Carnaval demonstra a força do conhecimento que ele produz. Mais que dar aulas de história, faz notar que essa manifestação deve também ser conteúdo e material nas aulas de geografia, arte, sociologia, língua portuguesa, literatura, filosofia, etc.

Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que estejam alinhados às suas relações é uma das competências gerais da educação básica. Desse modo, é fundamental que o estudante, principalmente nestas três etapas que compreendem a educação infantil, ensino fundamental e ensino médio, seja apresentado a saberes que estão presentes na sociedade e possa conectar os conhecimentos da sua realidade e de experiências enquanto indivíduo, bem como seja instrumentalizado a refletir e a argumentar sobre diversos temas de modo crítico e alinhado às demandas políticas, históricas e sociais.

O Carnaval, enquanto festa popular, e seus diferentes modos de manifestação, como os cortejos, bailes em clubes e sociedades, desfiles de blocos de rua e de escolas de samba, é impactado em sua história por inúmeros tensionamentos consequentes da formação social e política do nosso país, que segue impondo o embranquecimento e articulando a marginalização de corpos negros e periféricos. Além disso, também há as tentativas de padronização que são deliberadas seja pela mídia, seja pelos poderes público e privado com relação ao Carnaval e a todas as demandas que o envolvem.

De modo inverso, é necessário salientar como as temáticas narradas no Carnaval vêm nos últimos anos reconstruindo um processo de valorização da negritude, a partir de uma mudança social promovida pela comunidade negra e os movimentos negros.

Tal mudança evoca a mesma articulação que em décadas anteriores subverteu uma perspectiva elitista e racista no que dizia respeito a essa festa popular, projetando a maioria da população brasileira, composta pelas pessoas negras, e os seus saberes como alicerces da carnavalização no Brasil. Em acordo a essa subversão de perspectivas e valores favorecida pelo Carnaval, cada vez mais autores e acadêmicos vêm contribuindo com obras e pesquisas que se propõem a abordar os festejos carnavalescos pelo país, bem como as reflexões que se originam desse tema.

Nesse sentido, inversamente ao imaginário que crê numa promoção da alienação, o Carnaval escapa das tentativas ainda recorrentes de hierarquização do saber ancorada num pensamento eurocentrado que se reflete até os dias atuais nos currículos tanto da educação básica como no ensino superior. Tal característica ‘escapista’ também o faz ocupar um lugar político e de produção de vida, de celebração. Se considerarmos as tradições africanas e afro-brasileiras, seus rituais e valores, reconheceremos que o celebrar e o festejar não estão dissociados do saber e do pensar.

Parafraseando novamente o samba da Mangueira do início do texto, o Carnaval visibiliza “histórias que a história não conta” e por esse motivo, entre outros, dispõe de um potencial formativo que deve ser usufruído e projetado em contexto não apenas cultural, mas também educacional. E nesse sentido é vital, como modo de produção de vida, de subsistência e reinvenção, que se considerem as narrativas, as linguagens, as estéticas, os territórios, os e as agentes, as dinâmicas, as memórias, as heranças e a preservação das tradições que emergem do Carnaval e se relacionam com as experiências negras em sua pluralidade.

(*) Ana Paula Reis é professora de dança nas redes estadual e privada, produtora cultural, bailarina, doutoranda e mestra em Artes Cênicas pela UFRGS.

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