O príncipe dos observadores
Nascido Johann Friedrich (Fritz) Theodor Müller a 31 de março de 1822, em Windisch-Holzhausen, na Alemanha, primogênito de três homens e três mulheres, Fritz Müller, como ficou conhecido, emigrou para o Brasil em 19 de maio de 1852, adquiriu nacionalidade brasileira em 1856, e devotou sua vida ao estudo da megadiversidade da fauna e flora de nosso país. De fato, Fritz Müller escolheu mudar-se e assumiu nosso país, aprendeu a falar nossa “espécie de latim com os ossos quebrados”, e por vezes assinava “Frederico Müller”. Mais que tudo, traduziu como poucos nossa diversidade biológica.
Fritz Müller começou a estudar História Natural (além de Farmácia), mais especificamente Botânica, ainda com 13 anos. Entre 1841 e 1844 estudou Matemática e História Natural na Universidade de Berlim, e passou então a lecionar essas disciplinas no ginásio. Ainda em 1844, completou seu doutorado em Zoologia sob a orientação do anatomista e fisiologista Johannes Peter Müller, estudando sanguessugas das cercanias de Berlim. Ingressou no curso de Medicina em Greifswald em 1945, no qual não se graduou por negar-se a fazer o juramento cristão (ato que foi corrigido pela Universidade neste ano, ao conceder-lhe o título de Médico Post-Mortem). Seu ateísmo e manifestação política de caráter liberal o colocaram na condição de perseguido pelo então estado absolutista protestante. Após a frustrada Revolução de 1848, emigrou para o Brasil e radicou-se como sitiante na Colônia Blumenau, em Santa Catarina.
Ao chegar ao Brasil, instalou-se em meio à floresta, mas jamais se afastou do saber e da ciência. Em 1856, foi nomeado professor de Matemática, Química, Física e História Natural no Colégio Liceo em Nossa Senhora do Desterro (atual Florianópolis), que então se inaugurava, inclusive com a existência de um Jardim Botânico concebido por Fritz Müller. Ele exerceu essa atividade até 1867, quando o Liceo encerrou suas atividades, novamente por disputas político-religiosas. Durante o processo de fechamento do colégio, e apesar de ter direito ao cargo vitalício de professor derivado de aprovação em concurso público, Fritz Müller deixou Desterro devido ao aumento da influência dos jesuítas na cidade.
Fritz Müller retornou à Colônia Blumenau como pesquisador da biodiversidade local, o que encerrou seu ciclo de estudos com organismos marinhos. Em 1876 foi designado como naturalista viajante do Museu Nacional de História Natural, sediado no Rio de Janeiro. O trabalho como naturalista potencializou ainda mais sua vocação de exploração dos ambientes e organismos biológicos do Estado de Santa Catarina. Manteve correspondência frequente com colegas cientistas estrangeiros tais como Ernst Haeckel, Alexander Agassiz, Max Schultze, entre outros. Essa troca de informações o atualizava sobre bibliografias e descobertas, permitia discutir suas ideias e ainda trocar dados preciosos coletados das terras brasileiras. Fazia isso de maneira modesta, despretensiosa, sem vaidade, como era do seu ser, uma pessoa que fazia seus caminhos de pés descalços, literal e metaforicamente.
Fritz Müller ficou marcado por sua relação com Charles Darwin e seu conhecimento e colaboração que fez à Teoria da Evolução de Darwin e Alfred Russel Wallace, da qual tomou conhecimento em 1861 ao receber a edição em alemão de Sobre a Origem das Espécies de seu irmão Hermann Müller, que morava em Lippstadt. Ele foi pioneiro ao testar hipóteses relacionadas à teoria da seleção natural, usando os crustáceos de Desterro como organismos modelos, enquanto buscava ambiciosamente propor uma filogenia para o grupo por meio de inferências baseadas em dados do desenvolvimento, outra contribuição inovadora à época e que, inclusive, agregava elementos da Teoria da Recapitulação, de Ernst Haeckel.
Essa genial compreensão da conjunção entre Evolução e Desenvolvimento, que incluiu um “cladograma” (expressão gráfica que sintetiza as relações entre linhagens), o qualificou como o “precursor da Biologia Evolutiva do Desenvolvimento nas Américas” por Scott Gilbert. As quase três dezenas de artigos no tema culminaram em sua obra-prima Für Darwin (1864), publicada apenas cinco anos após o próprio A Origem das Espécies (1859). O livro foi posteriormente traduzido para o inglês (Facts and Arguments for Darwin, 1869) por meio de financiamento pessoal do próprio pai da Teoria da Evolução.
Darwin reconheceu Fritz Müller como um dos mais relevantes propulsores da Teoria da Evolução, o que se evidencia pelo brasileiro ser o autor mais citado a partir da quarta edição de A Origem das Espécies. Mais que isso, Darwin dedicou a Fritz Müller a alcunha de “príncipe dos observadores”, que talvez seja o maior elogio que possa existir a um naturalista, ainda mais vindo de outro naturalista como Charles Darwin. Como descrito pela revista Nature, “pode-se questionar se qualquer outro naturalista, salvo o próprio Darwin, deu ao mundo uma massa tão grande e original de observações pelas quais a seleção natural tenha sido tão fortemente apoiada”. A dupla trocou 106 correspondências entre 1865 e 1882 (ano da morte de Darwin) e, um ano antes de morrer, Darwin escreveu ao amigo: “Não acredito que haja alguém no mundo que admire seu zelo na ciência e seu grande poder de observação mais do que eu”. Portanto, não é leviano pensar que Fritz Müller instrumentalizou e foi determinante na consolidação da mais importante teoria biológica, a da seleção natural.
Outra contribuição marcante de Fritz Müller foi a proposta de um mecanismo de mimetismo em que espécies venenosas se parecem para lograr uma vantagem adaptativa conjunta contra predadores, os quais evitariam este padrão mimético expresso pelo coletivo da comunidade, não havendo assim um modelo (a espécie venenosa) e seus mímicos (as espécies não venenosas). Esse padrão, proposto em 1879, é hoje conhecido como mimetismo mülleriano, e se contrapõe ao mimetismo batesiano, que pressupõe justamente a ideia mais intuitiva, de que há um modelo biológico venenoso que é “imitado” pelos seus mímicos não venenosos, para vantagem destes contra predadores. Henry Walter Bates elaborou sua teoria estudando borboletas da Amazônia brasileira entre 1948 e 1959, mas a redigiu em 1862, quando já estava de volta à Inglaterra, e não contou, portanto, com observações experimentais em campo. Diferente da proposta de Bates, Fritz Müller também elaborou sua teoria estudando as borboletas, dessa vez da Mata Atlântica brasileira, mas com forte componente experimental in loco. Ademais, foi novamente pioneiro ao elegantemente explicar a sua teoria por meio de um modelo matemático, o primeiro a ser criado nas áreas de Ecologia e Evolução, hoje disciplinas que adotam a construção de modelos como paradigma explicativo. Vale ressaltar também que, embora as propostas de mimetismo batesiano e mülleriano tenham sido baseadas em lepidópteros (borboletas e mariposas), hoje elas são vastamente aplicadas a inúmeros grupos biológicos, de orquídeas a cnidários ou serpentes, e amplamente aceitas entre os biólogos.
Mas as contribuições de Fritz Müller não se resumiram às mencionadas acima. Sua produção copiosa é composta de 271 artigos científicos e dois livros (um póstumo de poemas, baseado na fauna e flora brasileiras, escrito e ilustrado por ele para a educação de suas oito filhas das nove, e um filho, que teve). Ele deixou conhecimentos originais e valiosos em antropologia, autobiografia, arqueologia (sambaquis); botânica (classificação, morfologia, fertilização e propriedades medicinais de Acanthaceae, Alismataceae, Araceae, Begoniaceae, Bignoniaceae, Bromeliaceae, Caricaceae, Fabaceae, Hypoxidaceae, Iridaceae, Malvaceae, Marantaceae, Moraceae, Musaceae, Myristicaceae, Myrtaceae, Orchidaceae, Poaceae, Podostomataceae, Pontederiaceae, Rubiaceae, Sapindaceae, Urticaceae, Verbenaceae, Zingiberaceae); críticas bibliográficas de livros e artigos; desenvolvimento (ciclos de vida de organismos terrestres e marinhos); ecologia (polinização, comportamento, interações biológicas, seleção sexual); evolução (seleção natural, diversificação); fisiologia (o pioneirismo na descoberta da comunicação química e dos feromônios); folclore (sobre o “minhocão”); genética (hibridização de plantas) e zoologia (obras de classificação, morfologia e reprodução de Annelida, Brachiopoda, Bryozoa, Chordata Cephalochordata, Cnidaria, Crustacea, Ctenophora, Hemichordata Enteropneusta, Insecta, Mollusca, Platyhelminthes turbelários, Porifera, Vertebrata Amphibia, Vertebrata Mammalia).
Vários fatos negativos se sucederam no avançar de sua vida: sua propriedade foi inundada em 1880, consternando inclusive a Darwin, que se ofereceu para pagar pela perda de livros, microscópios e instrumentos; em 1892 o recém-constituído governo republicano brasileiro fez com que se retirasse do posto de naturalista sem lhe pagar a devida pensão; foi julgado e aprisionado em 1893 no auge da Revolução Federalista; e faleceram seu irmão Hermann (1882) e sua esposa Karoline Töllner (1893). Viveu também com a tristeza e depressão do suicídio de sua filha Rosa, excepcional ilustradora e observadora como ele, em Berlim, em 1878. Mas mesmo com todas essas dificuldades, jamais renunciou à pesquisa científica, e trabalhou até o último ano de sua vida, acompanhado na floresta por seu neto Fritz.
Fritz Müller faleceu devido a uma inflamação sistêmica em 21 de maio de 1897, aos 76 anos (45 dos quais vivendo no Brasil), na cidade e país que adotou como lar – Blumenau, Brasil. Altruísta, ele viveu acreditando que a ciência lida com o avanço real do conhecimento coletivo, sem nunca procurar pelos benefícios pessoais que ela poderia lhe dar. É reconhecido mundialmente como um dos mais importantes naturalistas de sua geração. De fato, poucos brasileiros contribuíram tanto para a disseminação da ciência, para a formação de quadros e para tão refinados conhecimentos em ciências naturais, com qualidade ímpar, quanto este distinto sábio. No encerramento do ano comemorativo de seu 200º aniversário de nascimento, lembrar Fritz Müller serve de incentivo para nossos futuros cientistas e um reconhecimento da importância da conservação da biodiversidade como um todo.
O Peixinho e a Água-viva
(Fritz Müller)
Nas ondas do mar,
a descer e a subir,
estão rápidos peixinhos a brincar.
E cintilam
e luz como a prata refletem,
em êxtase estão a se banhar
nos raios dourados do sol a brilhar.
Um sino de vidro claro,
uma ampola cristalina e contrátil,
flutua calma no seu caminho.
“Peixinho, peixinho, deixe-a ir!
Peixinho, peixinho, se apresse em fugir!”
Ali atrás, longos fios transparentes se arrastam
e os olhos do peixinho a um banquete convidam.
“Serão, por acaso, minhocas o que eu vejo de repente?”
“Peixinho, peixinho, deixe-me alertar!
Peixinho, peixinho, não se deixe enganar!”
Próximo demais o peixinho chegou:
“Ai, ai, ai, agora ela me pegou!
Firme me amarrou e não consigo me soltar!
Firme me envolve e arde de matar!”
O peixinho sacoleja, o peixinho se contrai,
a água-viva movimenta, a água-viva se retrai,
o pobre peixinho é engolido e se vai.
(*) Antonio C. Marques é professor do Instituto de Biociências da USP.