O que esperar do Censo quilombola de 2023?
Apesar de serem as bases de dados mais completas existentes no país, os Censos Demográficos não contêm informações sobre os territórios e as populações quilombolas. Isso começou a mudar no processo de preparação do censo de 2020 que, no entanto, foi irresponsavelmente frustrado pelos cortes de verbas do governo federal.
As negociações tiveram início em 2008, com um termo de cooperação técnica entre o IBGE e a extinta Serpir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), destinado a criar uma base cartorial para os territórios quilombolas. Em 2018, o IBGE começou a se preparar para a inclusão da categoria no censo 2020, por meio de estudos preliminares realizados com base nas certificações emitidas pela Fundação Cultural Palmares, no Censo Agro 2017, além de outros registros administrativos governamentais, cadastros de organizações da sociedade civil e em trabalhos de campo da própria equipe do IBGE, destinada a testar os questionários que seriam aplicados.
Diante do adiamento do censo e da crise sanitária decorrente da pandemia de Covid-19, o IBGE decidiu publicar parte dos resultados dos seus estudos preliminares sob a forma da ‘Base de informações geográficas e estatísticas sobre os indígenas e quilombolas para enfrentamento à Covid-19’. Como o nome anuncia, a Base teve a intenção declarada de antecipar informações para que elas pudessem ser usadas pelos governos e movimentos sociais nas articulações de ações de enfrentamento à pandemia.
Se no caso das populações indígenas, abordadas pelos censos demográficos nacionais desde 1990, a Base apresenta uma contagem populacional, no caso da população quilombola, ela apresenta apenas a identificação e a localização municipal das “localidades quilombolas”. Apesar disso, a Base já nos apresenta uma informação altamente relevante: a existência de 6.023 localidades quilombolas no país, distribuídas por 1.674 ou 30% dos municípios do país, situados em quase todos os estados, excetuando-se Acre e Roraima.
O que esperar do censo demográfico quando ele puder efetivamente aplicar seus questionários a essas mais de seis mil localidades? Dispomos de parâmetros para antecipar e estimar a mudança da situação das comunidades quilombolas ao longo da última década?
Pesquisadores do Nepo-Unicamp (Núcleo de Estudos de População 'Elza Berquó' ) e do CEM-Cebrap (Centro de Estudos da Metrópole do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) firmaram parceria em torno da proposta de esboçar uma resposta a esta pergunta. Para isso recorreram a algumas estratégias metodológicas de releitura do Censo do IBGE de 2010 que, em termos práticos e bastante resumidos, implicou na sobreposição das informações geográficas das comunidades quilombolas reconhecidas oficialmente pelo Estado (e portadoras de título) aos dados do Censo de 2010, por meio do banco nacional de setores censitários georreferenciados, construído pelo CEM. Evidentemente há limitações nesta metodologia, já que os territórios quilombolas não coincidem exatamente com os setores censitários do Censo de 2010, mas a aproximação produzida (validada pelo confronto entre variáveis geográficas e censitárias) nos permitiram reunir informações sobre 171 territórios quilombolas e aproximadamente 147 mil pessoas. Com isso foi possível estimar alguns indicadores, como renda e alfabetização (ambos compõem o famoso Índice de Desenvolvimento Humano – IDH), acesso à água, saneamento, energia elétrica e coleta de lixo. Talvez um dos indicadores mais relevantes apurados, e que nos é possível abordar brevemente aqui, seja relativo à escolarização. É com base neles que podemos fazer algumas primeiras observações sobre o perfil da população quilombola.
As taxas de alfabetização nos 171 territórios quilombolas compulsados são inferiores às encontradas no Brasil em geral e nos municípios em que essas mesmas comunidades estão situadas em particular. Enquanto a porcentagem de alfabetizados com 10 anos ou mais no país é de 91%, entre os quilombolas ela atinge 75,6%. E tal disparate não pode ser atribuído ao contexto local ou regional em que estão situados. Pelo contrário, nos municípios em que os territórios quilombolas estão situados este índice é de 94,3%. Se este indicador aponta para uma situação histórica de desvantagem dos jovens e adultos quilombolas, quando observamos o mesmo indicador para a população entre cinco e nove anos, percebemos que tal desvantagem não foi mitigada pelas políticas da última década. A taxa de alfabetização da população quilombola de cinco e nove anos é de apenas 49,5% contra 68,5% no total nacional. Novamente isso não pode ser atribuído a falhas locais ou regionais da política de universalização da educação, na medida em que nos municípios em que os territórios quilombolas estão estabelecidos esta taxa é de 72,0%.
A desvantagem da população residente em territórios quilombolas em comparação com perfil municipal e nacional se mantém também ao considerarmos as taxas de alfabetização apenas das pessoas responsáveis pelo domicílio. Seja no âmbito rural ou urbano e independentemente do sexo, os responsáveis por domicílio nos territórios quilombolas possuem menor nível de alfabetização que os responsáveis fora dessas áreas. Tanto para homens quanto para mulheres, as taxas de alfabetização ficam em torno de 60% na área rural e 80% na área urbana, quase dez pontos percentuais abaixo, em média, dos responsáveis por domicílio em nível nacional ou nos municípios em que os territórios quilombolas estão situados.
Desta breve observação dos dados sobre alfabetização quilombola é possível fazer dois destaques. Primeiro, a desvantagem educacional quilombola não pode ser atribuída nem genericamente à sua situação rural, nem particularmente à situação dos municípios em que os territórios se encontram. Pelo contrário, os municípios em que estão situados tendem a ter taxas mais altas que as nacionais, não só no caso do indicador alfabetização, mas também para outros indicadores. Os dados do nosso universo de pesquisa apontam uma desvantagem relativa para a população quilombola que é coincidente com os limites dos seus próprios territórios. Segundo, os dados também apontam que tal desvantagem não vem sendo desfeita ou atenuada pelos últimos avanços no processo de escolarização nacional. Como uma das políticas públicas mais valorizadas nos 10 anos anteriores, a educação pode ser vista como um indicador dramático do racismo estrutural que atinge a população quilombola, ao mesmo tempo em que serve como argumento incontornável em favor de políticas públicas especiais para esta população.
Ao longo desses 12 anos, o tema da educação escolar quilombola ganhou um destaque e uma visibilidade totalmente novos. O documento final da Conferência Nacional de Educação (CONAE), de 2010, trouxe uma novidade: um capítulo sobre “Educação Quilombola”. Ele previa o direito à preservação das manifestações culturais dessas comunidades, da sustentabilidade de seu território tradicional, da observação de uma alimentação e de uma infraestrutura escolar que respeite sua cultura e sua relação com o meio ambiente. Previa também uma formação diferenciada dos professores destas escolas, a criação de um programa de licenciatura quilombola, a elaboração de materiais didático-pedagógicos específicos e, no campo da gestão, a adoção de mecanismos que garantam a participação de representantes quilombolas na composição dos conselhos referentes à educação. De toda a mobilização gerada em torno disso, resultou que, em 2012, foram aprovadas pela Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, que passaram a orientar os sistemas de ensino para que eles possam colocar em prática a Educação Escolar Quilombola em diálogo com a realidade sociocultural e política das comunidades e dos movimentos quilombola.
Isso nos leva a acrescentar mais uma pergunta às tantas com que começamos esse artigo: dez anos de mudanças qualitativas no campo da educação escolar quilombola terão tido força ou oportunidade de produzir impactos quantitativos no acesso quilombola à educação?
(*) José Maurício Arruti é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), credenciado nos Programas de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) e em Ciências Sociais (PPGCS) da Unicamp