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O sal e a língua

Marcelo Módolo e Antonio Carlos Silva de Carvalho (*) | 21/01/2022 08:30

Em uma questão da prova de geografia da segunda fase do vestibular da Fuvest (2020), relacionou-se o índice de precipitação média anual do Rio de Janeiro, de Cabo Frio e de Macaé com um fragmento de texto do geógrafo Aziz Ab’Saber. O item b dessa questão trazia: “Qual é a atividade de extração mineral conhecidamente associada à região de Cabo Frio-RJ? Explique como um fenômeno natural que ocorre na região corrobora para a existência dessa atividade”.

Logo, o candidato deveria dissertar sobre a extração de sal marinho e sobre o fenômeno da ressurgência na bela cidade da Costa do Sol, a partir do qual as águas mais profundas e frias sobem para a superfície marítima, diminuindo a precipitação pluviométrica, o que implica menor evaporação e precipitação, condição fundamental para a concentração do mineral nas salinas instaladas na região.

Ao testar os conhecimentos do candidato sobre climatologia e extração de sal marinho, a pergunta se notabiliza pelo uso distinto do verbo corroborar, “corrobora para a existência dessa atividade”.

Tradição e inovação

Os registros de corroborar na lexicografia portuguesa, em sua imensa maioria, apontam para um emprego de verbo transitivo direto e transitivo direto pronominal, o que repele a projeção da preposição para.

Com efeito, tradicionalmente esse verbo costuma aparecer nos dicionários nos sentidos de “fortalecer” e de “dar força”: i) o padre francês Raphael Bluteau (1728) diz “corroborar: fortalecer, dar força. É usado no sentido natural, e moral”; ii) o frei português Domingos Vieira (1873) apresenta “fortificar, fortalecer, enrijar, dar forças, vigorar. Figuradamente: Comprovar. (…) Termo jurídico. Confirmar, validar. Corroborar o contrato. Reforçar, dar nova força. Corroborar um argumento”; iii) o ouro-pretano Silva Pinto (1832), por sua vez, define-o no enxuto verbete “fortalecer, dar forças”; iv) já o carioca Moraes (1813), que fundou uma tradição lexicográfica em língua portuguesa, atesta que corroborar é “fazer forte, fortalecer, enrijar (…) dar forças”. Dicionários do século XX seguem na mesma toada: v) Caldas Aulete (1945) registra “fortificar, fortalecer, enrijar (…) (Fig.) Confirmar, comprovar (…) fortalecer-se, adquirir forças”; vi) Houaiss (2009) traz “dar ou adquirir força, robustez; tornar(-se) rijo, fortalecer(-se), ratificar, confirmar (algo); comprovar”.

Todavia, de um primeiro campo semântico tripartite de aprovação (comprovar, ratificar), assentimento (concordar, confirmar) e evidenciação (evidenciar, referendar), amplamente abonado pelos dicionários acima, corroborar passa a ter significado de “contribuir” na questão da Fuvest. Tal deslizamento semântico segue a lógica de que quem ratifica confirma, referenda, acaba por contribuir para algo, para o êxito de algum argumento. Com esse novo significado, a projeção da preposição para – com o significado de “com intenção, com o intuito de” – é mais do que satisfatória e obrigatória, pois quem corrobora “contribui para” algo.

Uma jabuticaba linguística

O utilíssimo Corpus do Português, de Mark Davies e Michael J. Ferreira, apresenta 71 usos de corrobora para na subdivisão Web/Dialects: um em português angolano, um em português lusitano, um em português moçambicano e 68 em português brasileiro, em um universo de um bilhão de palavras em páginas da web desses quatro países de língua portuguesa. Observemos os exemplos, respectivamente para Angola, Portugal e Moçambique:

1) Contudo, corrobora para uma visão hierárquica de essas distintas formas jurídicas – em a qual o direito (…);

2) O livro Colapso do Jered Diamond corrobora para dentre outros fatos, indicar que os EUA vão dar cabo à façanha de contaminar toda sua água através da ganância da exploração deste minério;

3) A existência desse dispositivo legal, a meu ver, corrobora para o fortalecimento de uma cultura de transparência e de um controle social da administração pública.

A divisão Now (News on the Web) traz 53 registros de corrobora para, todos de português brasileiro, no total de 1,1 bilhão de palavras, dos quatro países citados, no período 2012-2019.

Já a subdivisão Historical/Genres não apresenta ocorrência de corrobora para, em um conjunto de 45 milhões de palavras.

A hipertrofia de um sentido

Por algum motivo, corroborar para no sentido de “contribuir para” caiu no gosto dos brasileiros e parece já não incomodar os ouvidos dos falantes cultos, tanto que um dos maiores vestibulares do país empregou a construção sem problemas. Como o sentido do verbo foi alterado pelos falantes brasileiros, é natural que sua morfossintaxe apresente reflexos dessa alteração, com a inserção da preposição para.

Exemplos dessa ordem mostram que os usuários estão a todo momento processando o idioma, negociando sentidos, como bem aponta o linguista Paul Hopper, com a noção de gramática emergente, que capta o caráter fluido da estrutura da língua, sempre adiada, sempre negociável na interação real. E é essa interação, esse uso, que constrói os novos significados.

(*) Marcelo Módolo é professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

(*) Antonio Carlos Silva de Carvalho é doutor pela FFLCH/USP.

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