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Os rastros duradouros da pandemia

Helena Ribeiro (*) e Wanda Maria Risso Günther (*) | 01/06/2021 08:30

Pouco se tem falado dos impactos ao meio ambiente causados pela pandemia de covid-19. Os resíduos sólidos decorrentes das ações de proteção e cuidados constituem os principais perigos, sobretudo pelo elevado volume, complexidade e potencial de contaminação, associados ao alto custo de seu gerenciamento adequado. Este problema é sobretudo grave em regiões e países de baixa e média renda, sem infraestrutura e serviços adequados de coleta, tratamento e disposição final de resíduos sólidos. Soma-se a isto o comportamento da população, que descarta inadequadamente os materiais ao fim da vida útil.

Um rápido levantamento sobre os números de produtos e materiais, que necessitam de descarte especializado, nos dá a dimensão do problema.

Máscaras de proteção descartáveis: cerca de 129 bilhões de máscaras são descartadas ao mês no mundo. Grande parte delas é feita de polipropileno, material de alta durabilidade e não degradável. O descarte incorreto, infelizmente, é comum e pode ser observado em áreas urbanas. Com pluviosidade em maior volume, as máscaras de material leve são carreadas para a rede de drenagem, levadas para corpos d’água (lagos, rios e mares) e representam risco para a fauna aquática e poluição ambiental. Uso doméstico de máscaras laváveis e reutilizáveis por população fora de áreas de maior risco é uma forma de reduzir o uso de máscaras descartáveis.

Luvas descartáveis: Em 2020, a Malásia, um dos países maiores produtores de luvas descartáveis no mundo, forneceu 220 bilhões de luvas para suprir uma demanda de 330 bilhões, que prossegue em 2021. A demanda, em 2020, foi quatro vezes maior que em 2019, levando à falta de produto e grande aumento de preço: de 2 a 10 vezes em relação a 2019. Luvas descartáveis são feitas de látex, vinil ou nitrílica e têm grande durabilidade, além de exigirem descarte ambientalmente adequado. Com o decorrer da pandemia e estudos indicando que superfícies constituem risco baixo de transmissão do coronavírus, quando fora de hospitais, o uso de luvas descartáveis pela população em geral passou a não ser recomendado.

Seringas e recipientes de vacinas constituem outros materiais de difícil e caro gerenciamento. Por entrarem em contato com o paciente, são classificados como resíduos infectantes (Grupo A pela Resolução Anvisa 222/2018) e exigem segregação na fonte geradora e logística estruturada com tratamento prévio à disposição final no solo. O tratamento envolve métodos de desinfecção ou esterilização, em geral por meio de autoclavagem, micro-ondas ou incineração, o que incide no custo do gerenciamento. Até 4 de abril 2020, haviam sido aplicadas 1.175.451.507 doses de vacinas no mundo, não só em áreas urbanas, como também em zonas rurais e áreas distantes de locais onde operam sistemas adequados de tratamento. Este número é crescente e deve se ampliar em futuro próximo, com maior produção de vacinas e campanhas de vacinação deslanchando em países de renda baixa e média.

Diferentes materiais constituem os resíduos da vacinação como: seringas e agulhas, vidro com resíduo da vacina e algodão, que são considerados resíduos infectantes; tampas de plástico e metal dos vidros, invólucros de plástico e papel das seringas e papelão das caixas contendo as vacinas. Por alguns desses resíduos representarem risco à saúde e outros, potencial para reciclagem, necessitam ser segregados na fonte, ou seja, no momento da vacinação. Considerando-se as condições nas quais tem ocorrido a vacinação em âmbito global, a questão dos resíduos torna-se secundária, porém não menos importante. Em geral, nota-se a mistura de todos os resíduos, com pouca possibilidade de recuperação dos materiais presentes, contribuindo para significativo aumento dos resíduos de serviços de saúde.

Somam-se a esses produtos de uso comum pela população os resíduos infectantes de serviços de saúde produzidos nos exames para detectar o vírus e nos hospitais durante os milhões de hospitalizações.

Mas os resíduos sólidos não são os únicos a impactar o ambiente. Produtos domissanitários e álcool em gel, usados para limpeza e eliminação do vírus sars-cov-2, em que pesem seus enormes benefícios na proteção das pessoas e na prevenção de casos, além de todos os recipientes descartados, também apresentam impactos ao ambiente e possíveis riscos à saúde humana. Sprays antissépticos com cloro, pulverizados em transportes, calçadas, superfícies, podem ter efeitos respiratórios em humanos, exacerbar casos de asma em crianças e, em longo prazo, com níveis de cloro mais elevados, podem apresentar risco de câncer, sobretudo de bexiga, cólon e reto, por causa dos trihalometanos. Notícias falsas de que a ingestão de cloro mataria o vírus no organismo humano fizeram com que a OMS emitisse um alerta sobre os riscos do cloro e proibisse seu uso para tal fim. Por outro lado, o escoamento desses produtos para a rede de drenagem pode levar à poluição dos corpos d’água.

Quanto ao álcool em gel, houve um aumento da demanda de 2.800% em 2020 e de 3.000% no Brasil, por conta de seu preço não muito elevado e grande usabilidade, sobretudo em locais de difícil acesso à água corrente para lavagem das mãos e quando não há sujidade aparente. Ele é feito a partir de 70% de álcool mais glicerol e espessantes e a recomendação de cada aplicação, pela OMS, é de um volume equivalente a uma moeda na mão. Seu risco de queimadura em uso doméstico é reduzido, mas acidentes em transporte podem ser impactantes por sua inflamabilidade e recomenda-se uso de areia para contê-lo.

Num primeiro momento, havia preocupação de que sua elevada demanda mundial pudesse causar aumento de área plantada em cana e possível pressão para abertura de áreas agrícolas em florestas no país. O Brasil é o segundo maior produtor de etanol do mundo, atrás dos Estados Unidos. Em 2020 houve a maior produção de etanol da história, no país, com aumento de 5% em relação a 2019. Entretanto, este incremento se deu por aumento de produtividade no processo industrial, pois houve redução de 1,78% da área plantada no período. Dos 34,50 bilhões de litros produzidos em 2020, 10,12 bilhões foram para álcool anidro adicionado à gasolina e 23,89 bilhões de litros para álcool hidratado para veículos movidos a etanol. Assim, proporcionalmente, o volume de etanol usado para álcool em gel não pressionou o uso e ocupação do solo. Contrariamente, na safra 2020/2021, houve queda de 15% a 20% na produção de etanol, motivada por menor consumo com a restrita mobilidade e a substituição no campo por outros produtos, como soja e milho.

O transporte e distribuição desses insumos protetores da saúde exigem grandes movimentações transfronteiriças e intranações de meios de transporte, como aviões, caminhões, navios, veículos automotores de menor porte e barcos, dependentes de combustíveis fósseis. Os impactos da combustão destes combustíveis para a qualidade do ar e as mudanças climáticas são fartamente descritos na literatura.

Este artigo é um chamado aos cientistas para investigarem mais a fundo estas questões e pensarem em soluções mais adequadas e sustentáveis para o planeta e a saúde humana.

(*) Helena Ribeiro e (*) Wanda Maria Risso Günther são professoras da Faculdade de Saúde Pública da USP.

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