Perspectivas para os direitos sociais
Temos, recentemente, insistido na investigação das organizações rígidas e flexíveis da compra e venda da força de trabalho. Em síntese, trata-se de uma análise a partir da forma jurídica. A cada modo de produção corresponde uma forma social específica. No capitalismo, o sujeito de direito, supostamente livre, igual e proprietário, vende a sua força de trabalho.
Há, na circulação, uma reiteração de práticas que confirmam a reprodução deste elemento típico do capital. O que se dá, com distinção segundo as determinações históricas, é que, às vezes, a alienação se faz de maneira rígida (como ocorreu no fordismo) e, em outros momentos (como o atual), isso se processa com maior flexibilidade – atingindo todas as extensões da vida social (a ética, a estética, entre outras). Portanto, tais fenômenos não podem ser analisados isoladamente, o que se dá também com os direitos sociais, que foram intensamente afetados por esse processo. Pensaremos a questão a partir dos direitos do trabalho e da seguridade social (que engloba a Previdência, a Assistência Social e a Saúde).
De ninguém é desconhecida a velha cantilena de que o Direito do Trabalho precisa deixar de ser rígido e adaptar-se às realidades de novos tempos. Sob alegações de que isso aumentaria a produtividade e os postos de trabalho (fatos nunca comprovados), tem-se assistido, ao longo dos anos, à sua destruição. O mesmo se passa com a Previdência Social, sempre colocada como deficitária e que se transformou num sistema de contribuições sem a correspondente proteção à altura dos valores recolhidos pelos segurados. E isso piora quando se trata de setor público em que houve a elevação de alíquotas (inclusive pagas há anos pelos inativos!), seguida de significativa diminuição da proteção social.
Esse fenômeno foi intensificado nos governos Temer e Bolsonaro (não se excluindo, aqui, a responsabilidade dos governos anteriores que iniciaram o processo de deterioração dos direitos sociais). A reforma trabalhista de 2017 e a previdenciária de 2019 estão a comprovar o alegado: o alargamento da desproteção social promovida por estas duas medidas é inédito na história do País. Para quem achava que essas famigeradas alterações fossem propiciar o crescimento econômico, não só isso não aconteceu, como, surpreendidos pela covid-19, fomos colhidos pela intensificação do número de mortes, diretamente ligadas a esse processo.
Tudo isso foi acentuado pelo declínio, no atual governo, de políticas assistenciais, bem como do insistente ataque promovido ao Sistema Único de Saúde (SUS). Colhidos por esse progressivo desmanche do nosso sistema de segurança social, nos vimos entre os “campeões” de casos e de mortes decorrentes do vírus (junto a países como o Estados Unidos, que insistimos em ter como modelo).
A doença hoje atinge de modo mais significativo os mais pobres, mas circula entre os estratos sociais na mesma medida da intensa circulação da força de trabalho (resultado do afrouxamento das políticas de distanciamento social). O vírus também tem se revelado bastante flexível, tanto na sua circulação quanto na sua adaptação com variantes mais fortes que surgem decorrentes da ausência de políticas efetivas, já que o que importa, em última análise, é o fluxo das mercadorias em geral e da força de trabalho em particular. Afinal, o show deve continuar sob o nome de “novo normal” – que nada mais é do que a tradicional movimentação da força de trabalho com novas regras para a preservação de uma quantidade dela minimamente saudável para ser transacionada. Enfim, as palavras cada vez mais como determinantes da nossa materialidade: o “novo” Direito do Trabalho, a “nova” Previdência Social, o “novo normal”…
Nesse quadro, a perspectiva para os direitos sociais é trágica. A flexibilidade, que se intensificou no Brasil a partir de 2017 e assumiu contornos máximos no ano de 2020 (a partir de coisas como a diminuição de salários ou o aumento dos serviços em domicílio com custos para a classe trabalhadora), parece ter vindo para permanecer por muito tempo. Nos próximos anos, é possível antever muito sofrimento para as camadas mais desprotegidas da nossa sociedade. Uma dúvida, porém, fica no ar: por quanto tempo será possível tolerarem tanta miséria sem qualquer insurreição?
(*) Marcus Orione, professor associado de Direito da Seguridade Social da Faculdade de Direito da USP