Políticas públicas, camuflagens e interesses ocultos
A história mostra que o “progresso tecnológico” não resolve todos os problemas, antes cria novos. A pesquisa científica é compartimentada, os diferentes setores não se falam; física, química, economia permanecem à parte das ciências sociais, humanas e da saúde, o que é “tecnológico” passa a ter valor e aplicação universal.
Esforços científicos são cooptados com fins lucrativos e assim legitimados por políticas governamentais. Lobbies especializados na captura de recursos públicos para grandes interesses corporativos, envolvendo tecnologias e grandes investimentos financeiros, dominam o mercado.
As tecnologias aliadas contribuem para (e, ao mesmo tempo, desvinculam-se de) os riscos decorrentes da exploração intensiva da terra pela mineração, extração da madeira, agricultura química industrial, esta abastecida por monopólios (sementes, culturas geneticamente modificadas, fertilizantes, pesticidas).
A biomassa global está em queda livre, os riscos envolvem não apenas indígenas e grupos vulneráveis separados do processos decisórios, mas toda a humanidade. A recuperação da Terra e a recuperação de pessoas são mutuamente dependentes e devem ser simultâneas, no espaço e no tempo.
As inovações, na forma de produtos, dispositivos ou métodos, devem estar vinculadas a todos os Objetivos de “Desenvolvimento Sustentável”, não simplesmente aos processos de mercado existentes, facilmente manipulados por interesses políticos e econômicos em escala global.
Pressões esmagadoras sobre o meio ambiente global estão ligadas à ascensão e queda de produtos, na maioria das vezes desvinculados de aspectos técnicos (menor consumo de energia, por exemplo), mas devido à obsolescência programada, rápida e artificialmente manipulada.
Uma “civilização ecológica” inclui segurança, saúde, educação, equidade, ética, justiça e beleza. O planejamento urbano, envolvendo aparelhagem tecnológica, eletromagnética, medidores inteligentes, não resolve a falta de políticas públicas, de saneamento básico, de transporte e moradia adequados.
A hegemonia das soluções tecnológicas e tecnocráticas para todos os problemas individuais e coletivos (segurança, educação, saúde, meio ambiente) é uma falácia ecológica, econômica, política, cultural e educacional e obscurece o que está por trás dos muitos problemas de difícil solução no mundo.
Não é a ausência de tecnologias para o ensino (a distância ou presencial), mas a falta de políticas e programas para desenvolver consciência crítica e participação cívica, o que implica novos paradigmas, conceitos e maneiras de estar no mundo, além das habilidades para trabalhar e agir no “sistema”.
Problemas de saúde pública, epidemias fatais, altos níveis de criminalidade e violência estão ligados a condições econômicas, culturais, políticas e ambientais assimétricas, resultando em habitações precárias, espaços públicos inadequados, conflitos de todos os tipos, com graves impactos sociais.
Panaceias mágicas, a “internet das coisas”, o marketing digital, a informática, a telemedicina não resolverão, de uma vez por todas, os problemas relacionados à pobreza sistêmica, à assistência à saúde, à desnutrição, à moradia precária, à criminalidade, à ausência de políticas para trabalhadores e comunidades.
Os dispositivos de vigilância, medição ou comunicação não atingem a raiz dos problemas, muitas vezes obscurecendo e desviando a atenção do público para problemas reais, desviando responsabilidades e dissipando recursos que poderiam ser mais bem aplicados.
Mais de 180 cientistas de 35 países recomendaram recentemente uma moratória na implantação da quinta geração (5G) para telecomunicações. Vários estudos científicos sobre poluição eletromagnética e dispositivos sem fio já enfatizaram os graves riscos à saúde física e mental de diferentes populações.
A Organização Mundial da Saúde (IARC) classificou os campos eletromagnéticos de alta frequência como possivelmente cancerígenos (de acordo com a professora Adilza C. Dode, do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix, a radiação eletromagnética é cem vezes maior no Brasil do que na Suíça).
A negligência do princípio da precaução, quando as atividades humanas podem levar a danos inaceitáveis, levou aos piores desastres, epidemias, fome e morte, a eventos catastróficos ou irreversíveis, como a perda da necessária biodiversidade para sustentar a vida na Terra.
O tão esperado “retorno ao normal”, após a atual pandemia, não pode repetir as tendências atuais, exigindo mudanças fundamentais nos paradigmas de desenvolvimento, crescimento, poder e riqueza incorporados nas instituições políticas, tecnológicas, econômicas e educacionais.
Os problemas e os contextos em que ocorrem devem ser reinterpretados e reestruturados e abordados através de uma nova lente; políticas públicas, advocacia, comunicação, pesquisa e ensino devem estar concentrados no “fenômeno geral”, do qual emergem problemas específicos.
Em vez de tentar reparar situações “ruins” para torná-las “boas”, e considerar as perspectivas atuais como fixas e projetá-las para o futuro (previsão exploratória), deve-se definir previamente as metas desejáveis e explorar novos caminhos para alcançá-las (previsão normativa).
O modelo etiológico procura responder à causa do sofrimento; em contraste, o modelo teleológico está focado no que poderia ser feito em vista de perspectivas diferentes. Isso requer capacidade institucional, neutralidade judicial, transparência informacional e espaços para participação cívica.
Nichos de aprendizagem sociocultural, tanto na academia quanto na sociedade em geral, poderiam reestruturar os conceitos e práticas existentes ou criar novos. Compartilhar histórias sobre um “sistema” pode ajudar as pessoas a desenvolver novas perspectivas sobre o sistema que compartilham.
Abordar a exclusão estrutural por meio da inclusão legal, social ou econômica no sistema vigente (direitos civis, normas sociais ou sistema educacional orientado para o mercado) não leva em consideração a formação e a manutenção das instituições, as falhas institucionais, a corrupção.
Concentrar-se nos “direitos humanos”, sem reivindicar condições econômicas, políticas, educacionais e sociais, para que todos se beneficiem desses direitos, leva a aceitar as assimetrias sociais e econômicas que permitem que bilhões de pessoas sobrevivam em condições subumanas.
(*) André Francisco Pilon é professor associado da Faculdade de Saúde Pública da USP.