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Publicidade é coisa de adulto

Marcelo Gomes Sodré (*) | 18/07/2020 16:14

O artigo "Não existe publicidade infantil", de autoria de Marco Sabino, contém uma verdade inicial: "publicidade infantil" realmente não existe. Pena que ele, ao não se aproveitar integralmente das consequências desta constatação, chega a uma conclusão equivocada: a de que "publicidade infantil" é o mesmo que "publicidade de produtos infantis". E essa confusão de palavras permite ao autor ir ainda mais longe no equívoco, quando afirma que as organizações sociais que exigem o fim da publicidade dirigida ao público infantil estariam prejudicando setores empresariais e ferindo o livre mercado e a liberdade de expressão.

Ainda, na perspectiva do autor, querer regulamentar e controlar a publicidade para as crianças seria uma maneira de desconsiderar o direito dos pais de educar livremente seus filhos. Esta é a lógica interna do artigo. Quantos jogos de palavras! Quanta confusão conceitual!

Publicidade é coisa de gente grande

Façamos uma afirmação inicial fundante: publicidade é coisa de gente grande, tema que deve ser cuidado, decidido e assistido apenas pelos adultos.

E, neste contexto, nunca é demais lembrar que é dever da família, da sociedade e do Estado proteger a criança com prioridade. Absoluta prioridade. Qualquer mãe sabe disto, mesmo que nunca tenha lido o artigo 227 da Constituição Federal. Aliás, mesmo que tal dispositivo não constasse na nossa Constituição. Cabe perguntar: será que certos setores econômicos não se sentem obrigados a atender tal mandamento constitucional e moral por se acreditarem acima da própria sociedade? O mercado está acima dos valores fundantes da civilidade?

Antes de adentrar nos argumentos específicos do referido artigo, quero apenas demonstrar que em uma passagem quase despercebida, com um sutil deslocamento conceitual, o artigo funda equivocadamente seus frágeis alicerces e confunde o leitor menos atento.

A expressão "publicidade infantil"

Vejamos. Ao buscar corrigir o uso da expressão "publicidade infantil" (expressão genérica usada e compreendida por todos os setores), o articulista introduz um novo conceito e constrói seus argumentos a partir dele: os movimentos de defesa da criança estariam impondo "a proibição do direito de anunciar produtos legais" (sic).

Falso. Isto não foi dito. Isto nunca é dito. Pelo contrário. O que sempre é afirmado, com todas as letras, é que o que está proibido é a publicidade direcionada às crianças, o que é muito diferente. As empresas têm, e continuarão tendo, a plena liberdade econômica de produzir e comercializar produtos infantis, bem como anunciá-los, com plena liberdade de expressão, desde que os anúncios sejam dirigidos aos pais e mães que, por sua vez, poderão tomar livremente as decisões que lhes competem. Estamos em um país de livre mercado e de livre expressão, mas com regras a serem seguidas por todos. Ponderação. Não foi assim que ganhamos nossa "carteirinha" de civilizados?

O sutil deslocamento conceitual feito pelo referido artigo —ao transmutar o conceito "publicidades dirigidas para crianças" para "publicidade de produtos e serviços consumidos por crianças" (sic) —, nos remete a um mundo totalitário que ninguém de nós quer e que lutamos arduamente para que não se imponha. Na democracia que defendo, um pai ou mãe podem livremente receber ofertas de produtos infantis de todas as espécies (desde que produtos legais, por óbvio) e decidir segundo suas consciências. O que não pode é o mercado desejar abduzir nossos filhos, ignorando nosso dever de educá-los. Educar um filho não é apenas um direito, é um dever. O mercado jamais deveria ignorar meu papel de pai e passar por cima de mim. Desculpe a franqueza: uma empresa não pode se arvorar a me auxiliar na educação do meu filho. Uma empresa não pode sequer ter a intenção de educar meu filho. Não lhe cabe. Não me atrapalhar na maior tarefa da minha vida como pai (educar meu filho) já basta.

Mas isto não significa que o mercado não possa ter um papel relevante e uma associação empresarial, por exemplo, possa ter como uma das suas funções auxiliar seus filiados a respeitarem as crianças. E isto é sempre muito bom. Por favor, cada coisa no seu lugar.

Não é sobre proibição: é sobre direcionamento

É preciso, assim, enunciar com todas as letras que não se defende a ideia da proibição de publicidade de produtos e serviços consumidos por crianças. O que não se pode é dirigir tais publicidades para as crianças.

Isto por uma simples razão: elas sempre são hipervulneráveis. Neste espaço não é possível desenvolver uma tese acadêmica para justificar esta afirmação, mas peço que cada um faça a si mesmo as seguintes perguntas: as crianças são muito vulneráveis a apelos publicitários? Elas têm instrumentos próprios para se defenderem? Quem é a melhor pessoa para ajudá-las na formação de seu juízo moral?

Seriam as ONGs tão poderosas?

Referido artigo faz uma afirmação no mínimo curiosa: as ONGs teriam solidificado no inconsciente coletivo da sociedade a ideia de que toda a publicidade dirigida às crianças seria abusiva, sendo necessário desmitificar esta falsa ideia.

Quanto poder têm as ONGs na formulação desta afirmação! Seriam as ONGs efetivamente tão poderosas? Não. Jamais. Mas seguindo esta ideia, permito-me fazer outras perguntas: como seria formado o universo do inconsciente coletivo de crianças torpedeadas por publicidades 24 horas por dia? Quem estaria formando o juízo moral das crianças? O mercado? A palavra que salta da minha mente é: cuidado. Quem acredita que existe um inconsciente coletivo deveria saber também do poder extremo da publicidade na formação deste inconsciente coletivo. Prudência, antes de tudo.

Recolocados os conceitos nos lugares, vamos aos argumentos específicos. Seria realmente incorreto, do ponto de vista jurídico, afirmar que a publicidade dirigida às crianças está sendo reconhecida como proibida pelos tribunais por conta de ser abusiva?

A regulamentação da legislação federal

A citada Resolução Conanda - Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente nº 163, que dispõe sobre a abusividade do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e ao adolescente, nunca foi questionada na sua essência em juízo e continua em vigor. Isto porque, nos termos do Art. 2º da Lei nº 8.242/91 (que é uma Lei Federal!!!) cabe ao Conanda "elaborar as normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente…” e foi o que o referido Conselho fez. Até onde se saiba, uma norma legal só é retirada do mundo jurídico por dois caminhos: sua revogação por uma nova norma, o que nunca ocorreu implícita ou explicitamente; ou a declaração de sua ilegalidade pelo Poder Judiciário, o que também nunca ocorreu.

A vontade de um dos interessados na não aplicação da norma ainda não tem a força de revogá-la. Ainda bem. Estamos em uma democracia. Além disto, falaciosa a argumentação de que o tema só possa ser tratado por lei federal aprovada pelo Congresso Nacional. Todos sabemos que existem vários tipos de normas e que Conselhos também editam normas (em sentido genérico) regulamentando as regras (estrito senso), se tiverem atribuição legal para tanto.

É o que aconteceu. Desta forma, o Conanda pode regulamentar a legislação federal existente no que se refere a proteger as crianças por expressa determinação de uma lei federal. E não temos dúvida de que a Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do Adolescente legislam no sentido de que é abusivo ignorar a vulnerabilidade das crianças. O Conanda nada mais fez do que regulamentar esta legislação federal e com fundamento em uma atribuição que lhe foi dada por uma lei federal. E, volto a afirmar, não existe qualquer manifestação judicial em sentido contrário.

Decisão de compra deve ser (sempre) dos pais

Por outro lado, Tribunais Superiores já decidiram, diferentemente do que afirma o articulista, a respeito da abusividade da publicidade dirigida a crianças. Vale transcrever, por mais técnico que seja, o argumento de decisão já transitada em julgado, que realmente se aplica a um caso específico, mas que traz um fundamento genérico:

É abusivo o marketing (publicidade ou promoção de venda) de alimentos dirigido, direta ou indiretamente, às crianças. A decisão de compra e consumo de gêneros alimentícios, sobretudo em época de crise de obesidade, deve residir com os pais. Daí a ilegalidade, por abusivas, de campanhas publicitárias de fundo comercial que utilizem ou manipulem o universo lúdico infantil (art. 37, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor). Vale notar que: (i) a expressão utilizada pelo relator é "campanhas de fundo comercial que se utilizem ou manipulem o universo lúdico infantil", o que demonstra que, por este voto vencedor, o marketing nunca pode se utilizar do universo lúdico infantil; (ii) uma publicidade é abusiva unicamente "por se tratar de anúncio ou promoção de venda de alimentos direcionada, direta ou indiretamente, às crianças"; e (iii) tal decisão tem como fundamento direto o Código de Defesa do Consumidor, que é uma lei federal.

O contraste da força dos argumentos é translúcido: a Resolução do Conanda nunca foi declarada ilegal ou inconstitucional em Juízo e, por outro lado, o STJ já decidiu de forma terminativa em pelo menos um caso concreto, com base em lei federal, no sentido de que é abusiva uma publicidade pelo simples fato de ter sido dirigida ao público infantil.

Como já dito, proteger as crianças de forma adequada não significa acabar com a liberdade econômica e com a liberdade de expressão. Os produtos infantis podem continuar a ser comercializados e os publicitários podem continuar a usar sua criatividade, desde que lembrem que o Brasil fez uma opção na Constituição Federal de proteger suas crianças com absoluta prioridade e que existe uma legislação federal infraconstitucional para dar efetividade a tal princípio. As famílias já tinham feito esta opção bem antes da Constituição de 1988.

Polêmica a partir de consulta pública

Toda esta polêmica teve como origem recente uma consulta pública feita no âmbito da SENACON - Secretaria Nacional do Consumidor para regulamentar o tema "publicidade e crianças".

Quanto a este tema, gostaria de ser o mais objetivo e didático possível: (i) toda consulta pública é, em si mesma, bem-vinda; (ii) o surgimento de uma nova regulamentação sobre o tema não impede que qualquer setor empresarial mantenha e aprofunde sua autorregulação e seus próprios controles, o que é absolutamente salutar; a celeridade do Conar em algumas situações é inquestionável e é melhor para todos se os problemas puderem ser resolvidos na sua origem; (iii) o que a autorregulação empresarial não deve, e não pode, é querer dar a palavra final sobre tudo e todos; e (iv) futuras regulamentações deveriam ter principalmente como foco central os novos problemas que temos para resolve.

Pensando nesta última afirmação, entendo que deveríamos centrar totalmente nossa atenção e energia para o novo universo confuso que se apresenta: "criança, publicidade e mundo digital". Espero que, após a consulta realizada, a SENACON possa aprofundar seus estudos e nos apresentar uma proposta de regulamentação, ou uma nova consulta pública, a respeito deste mundo novo que nos atormenta com todas as dúvidas. Seria muito bem-vinda. Mas, mesmo neste mundo digital novo, mantenho uma certeza: publicidade é uma coisa para adultos.

(*) Marcelo Gomes Sodré é membro do Conselho Diretor do Idec, professor da Faculdade de Direito da PUC/SP, advogado e membro do Conselho do Programa Criança e Consumo, do Instituto Alana

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