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Quantas mentiras a democracia suporta?

Ergon Cugler (*) | 03/01/2023 08:30

Enquanto cada um de nós sonha com um Brasil menos desigual, nos deparamos com notícias falsas que saltam das redes sociais e vão desde supostos “desvios de trilhões de reais”, até “fechamento de igrejas”, além de mentiras sobre “fraudes nas urnas” e tantos outros absurdos que colocam temas como a geração de emprego e renda, o direito à educação e à saúde e o combate à fome em segundo plano no País.

Em outubro de 2020, escrevi em um artigo no Jornal da USP se “ainda sabemos o que é real em meio a tanta desinformação?”. No texto, que entrou para o Caderno do Aluno das escolas do Estado de São Paulo, provoquei que enquanto 73% dos brasileiros acreditaram em pelo menos uma notícia falsa sobre a pandemia da covid-19, com o avanço das chamadas deep fakes (vídeos manipulados e editados), a desinformação poderia correr ainda mais e convencer cidadãos desavisados com tamanha sofisticação.

Parte de nós subestimou o poder e a capilaridade da mentira. Pois, longe de precisar de edições sofisticadas, avançam nas redes sociais conteúdos até que verdadeiros, mas que são retirados de contexto, sendo ainda mais difícil de se desmentir e defender a verdade.

Con.tex.to. (sm), segundo o Dicionário Michaelis, “conjunto de circunstâncias que envolvem um fato e são imprescindíveis para o entendimento deste”. Em outras palavras, a relação entre o objeto e a situação em que ele ocorre, tal como o lugar e o tempo em que ele está, o emissor e o receptor envolvidos e elementos que levam ao seu entendimento mais próximo da realidade. Percebam, é mais objetivo provar quando um conteúdo falso é realmente falso. Se vemos uma montagem, ou uma notícia fabricada, por exemplo, basta mostrar que a imagem original é outra ou que o link citado como fonte sequer existe e, então, buscar desmascarar a mentira.

Porém, quando a subjetividade entra em cena e temos o trecho de um vídeo retirado de seu contexto, onde se vê alguém falando em alto e bom som frases absurdas, ou temos um boato circulando, omitindo informações importantes e usando um argumento de autoridade, a resistência para se contrapor tal mentira se demonstra enorme. Cai-se para uma vala comum, em que aqueles que discordam, estariam tentando “emplacar uma narrativa” contra os “supostos fatos revelados”.

Narrativa & desinformação

Avançam os estudos sobre a desinformação. Como exemplo, os autores Fallis e Zattar apontam que:

1) Toda desinformação é uma informação, ou seja, não é a mera ausência de informação, ou sobre uma informação parcial e incipiente; além disso,

2) tal desinformação é uma informação enganosa, que leva ao equívoco; e, por fim,

3) esta informação enganosa tem como objetivo induzir ao erro e maliciosamente conduzir o receptor ao engano. Em resumo, é uma informação com o objetivo de enganar.

Porém, nem toda mentira tem como base uma informação totalmente falsa. Se considerarmos o contexto, percebemos que mesmo uma informação com base na verdade também pode ser sequestrada para interesses maliciosos.

Mas enquanto a mentira voa e a verdade engatinha, se um conteúdo verdadeiro é retirado de contexto ou apenas recortado, não temos como dizer que ele em si é falso. E, sendo verdadeiro, até explicar que ele está fora de contexto, a mentira já fez vítimas.

É o que Wardle e Derakhshan nos ensinam ao classificarem como “disinformation” uma notícia tanto falsa quanto nociva (como memes bombásticos e manipulações visivelmente maliciosas); “misinformation“, uma notícia falsa, porém não nociva (como boatos populares, que apesar de falsos, quase não impactam as nossas vidas); e “malinformation“, uma notícia nociva, mas não falsa (um conteúdo verídico, retirado de contexto ou distorcido; como exemplo, o vídeo real de bombardeios na Faixa de Gaza, mas que foi veiculado em rede nacional como se tivesse ocorrido na

Ucrânia, com o objetivo de disputar a opinião sobre o conflito com a Rússia).

No centro deste raciocínio está observarmos que a mentira é muito mais dinâmica e mutável do que uma simples notícia falsa. Um dos maiores exemplos a que podemos dar luz é o próprio discurso de ódio, sendo este um conjunto de investidas baseadas em estereótipos e narrativas que, muitas vezes, utiliza informações verdadeiras, mas fora de contexto, para estimular sistemas de crenças ou preconceitos contra grupos ou indivíduos.

É aquela piada que pouco a pouco reforça estereótipos, se transforma em aversão e, quando menos se espera, surgem vítimas no mundo real. Porém, enquanto a democracia e as instituições resistem a ataques tão explícitos, até que ponto uma narrativa pode distorcer e criar uma realidade paralela?

Contexto & verdade

Democracia requer verdade, mas mais do que verdade. Democracia requer verdade em contexto. Por tabela, contexto requer interpretação, senso crítico e, em uma sociedade digital e conectada, também requer um letramento digital que tenha condições de interpretar fontes, mas também interesses reais ao redor de tais fontes, para além de quaisquer teorias da conspiração.

Em meio a pandemia da covid-19, com o uso criminoso de tais tecnologias, a disputa da sociedade, que já é repleta de desigualdades, se viu ainda mais desequilibrada. Enfraquecendo a democracia na medida em que narrativas encomendadas e operadas por profissionais se favorecem em detrimento daquelas que não possuem tal aparato.

Criam-se conflitos, ambiguidades e isso ainda se soma ao mantra de uma suposta imparcialidade política em determinados debates mais técnicos, afastando mais ainda a sociedade da discussão política. Até porque fica mais fácil manter a desinformação como prática quando um cidadão não tem acesso à discussão real da sociedade, restando apenas a abstração de teorias da conspiração resumidas a montagens polêmicas e notícias falsas.

Logo, ainda que a fachada democrática seja preservada esteticamente, o Estado de exceção é incrementalmente fortalecido na medida em que a realidade passa a ser desconfigurada por conflitos distorcidos e desiguais, inclusive fazendo uso oportunista das instituições e da estrutura pública – onde robôs criam volume ao subir hashtags e impor pautas encomendadas.

Enfrentar a mentira é um desafio emergente, multidimensional e transdisciplinar, pois enquanto alguns insistem em desconsiderar a realidade, esta cobra a conta diante de um país com desigualdades tão profundas, em que faltam trabalho digno e alimento em muitos lares.

Não se supera tal desafio, porém, sem aproximar a verdade dos diversos contextos e, então, ser possível dialogar com este Brasil tão desigual. Pois, enquanto um Brasil paralelo é construído na conta da distorção da realidade, vemos que não basta haver verdade, é preciso haver verdade em contexto.

(*)  Ergon Cugler é pós-graduando na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP e pesquisador do CNPq.

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