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Quem negocia a biodiversidade nos oceanos?

Thales Jéferson Rodrigues Schimitt (*) | 14/11/2022 08:30

Neste nosso planeta azul, os oceanos sustentam a vida em suas mais diversas formas. O meio ambiente aquático constitui ecossistemas únicos, desde as regiões costeiras até as fossas abissais, com ampla biodiversidade. Além disso, toda a vida terrestre igualmente depende dos oceanos, não somente como provisão fundamental de água, mas também como regulador do clima e gerador de oxigênio.

Para nós, seres humanos, o mar representa a fonte de alimentação de muitas comunidades. Mais que isso, é sobre o e no espaço oceânico que a economia mundial se movimenta, com o transporte incessante de cargas em navios, o uso de seus recursos, sejam vivos ou não, de peixes a petróleo, e mesmo a apreciação de suas belezas para o lazer. Por outro lado, é na vastidão de suas águas que depositamos a maior parte de nosso lixo — plásticos, químicos ou até mesmo, em certo sentido, gases de efeito estufa que nossas indústrias emitem — na esperança vã de que “vastidão” signifique “sem fim”. Assim, ainda que a relação da humanidade com os oceanos seja dúbia, não se pode negar que é fundamental.

No cenário internacional, essa percepção tem movimentado Estados, organizações internacionais e atores civis a criarem políticas e regulações nos mais diversos níveis, no que chamamos de governança dos oceanos. A Organização das Nações Unidas (ONU) declarou o período de 2021 a 2030 como a Década do Oceano, considerando a necessidade premente de promover a Agenda 2030 e o desenvolvimento sustentável. É nesses anos que se apresentam questões importantes para a comunidade internacional, como o combate à pesca ilegal e excessiva e a deliberação sobre os rumos da mineração no fundo do oceano.

Nesse contexto, apresentam-se como questões relevantes o uso e a conservação da biodiversidade para além da jurisdição nacional (BBNJ) — isto é, em águas internacionais, sem o controle de qualquer Estado. Conforme a tecnologia avança, abrem-se novas portas para a exploração dos recursos vivos marinhos, não somente pelo maior alcance das atividades humanas, chegando aos limites do planeta, mas também pelo surgimento de novas possibilidades comerciais, como o uso de recursos genéticos para o desenvolvimento da indústria da biotecnologia. A governança dos oceanos atual, entretanto, não dispõe de um quadro regulador dessas atividades coerente e unificado.

Por um lado, para Estados com ampla capacidade tecnológica e industrial, isso pode ser um problema, na medida em que a insegurança jurídica impede a expansão de suas atividades econômicas. Por outro lado, para a humanidade e a biodiversidade, a falta de regulação e de medidas de conservação permite que os recursos vivos sejam definidos como “recurso comum” — em outras palavras, disponíveis a quem chegar primeiro sem quaisquer limites oficiais.

É a partir dessa situação da governança dos oceanos que surge a iniciativa de criar um tratado internacional para a BBNJ. As negociações multilaterais para isso iniciam nos anos 2000, com um Grupo de Trabalho Informal proposto pela Assembleia Geral das Nações Unidas, e culminam na Conferência Intergovernamental BBNJ, a última etapa formal de negociação, iniciada em 2018. Desde então, foram realizadas cinco reuniões multilaterais, com a participação dos mais diversos atores do sistema ONU e considerável número de representações nacionais, porém sem sucesso. Um consenso ainda não foi alcançado, e a Conferência, adiada, com continuação prevista para 2023, na esperança de ter um acordo firmado.

A pesquisa “Negociações sobre Biodiversidade Além da Jurisdição Nacional: Uma Análise de Delegações no Contexto Institucional”, orientada por Veronica Gonçalves, desenvolvida no contexto do Grupo de pesquisa em Relações Internacionais e Meio Ambiente (GERIMA-UFRGS) e apresentada no XXXIV Salão de Iniciação Científica UFRGS, olhou para a Conferência BBNJ com uma importante questão: quem negocia a biodiversidade nos oceanos? Está claro que há interesses diversos em jogo e que um pequeno número de países é capaz de se aproveitar do uso da BBNJ — a saber, aqueles que possuem indústrias avançadas na tecnologia de ponta.

Contra esses interesses particulares, entretanto, a conservação beneficia a todos. Um eventual tratado sobre a questão, porém, não é negociado “pela humanidade”, mas por representantes que os Estados enviam. Assim, quem negocia importa, por implicar desigualdades de representação nas cúpulas internacionais.

De fato, olhar especificamente para quem negocia na Conferência BBNJ — quantos representantes cada Estado manda, de que órgãos burocráticos, com qual autoridade técnica e científica — explicita a desigualdade da capacidade de negociação. Um pequeno número de Estados com os maiores potenciais de exploração dos recursos marinhos, que chamamos de potências tecnológicas, como Estados Unidos, Japão, China e União Europeia, apresenta delegações grandes, diversas e com negociadores capacitados tecnicamente para discutir questões complexas, como o uso de recursos genéticos. Por outro lado, Estados com menor capacidade econômica, mas impactados pela perda da biodiversidade, como as Ilhas do Pacífico, têm dificuldades para participar efetivamente das negociações.

Se são pessoas que fazem as políticas que governam nossas sociedades, quem negocia tratados importa para a governança do planeta? Olhar para a Conferência BBNJ sob essa ótica mostra, acima de tudo, problemas de equidade que permeiam o multilateralismo. Nesse contexto em que a princípio tudo se decide por consenso, não são todos que têm sua voz igualmente ouvida. No caso de uma negociação sobre biodiversidade em um espaço fundamental do planeta, a desigualdade de representação nacional reflete-se também em permanência da apropriação de recursos como motor da atividade humana no meio ambiente oceânico, mesmo que um eventual tratado seja firmado. Quem negocia importa, pois é das decisões tomadas por essas pessoas que depende o compromisso internacional com a natureza, com a equidade e com as gerações futuras.

(*) Thales Jéferson Rodrigues Schimitt é graduando em Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador do Grupo de pesquisa em Relações Internacionais e Meio Ambiente (GERIMA-UFRGS).

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