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Sobre a autonomia das universidades

Nina Ranieri (*) | 17/07/2020 10:15

Abrevíssima vigência da MP 979, que deu poderes ao ministro da Educação para indicar reitores pro tempore nas universidades federais, sem consulta à comunidade nem elaboração de listas tríplices, durante a pandemia de covid-19, é apenas mais um capítulo no conjunto inesgotável de irresponsabilidades e escárnios do governo federal em relação à educação pública e aos cidadãos brasileiros. Não se tratou apenas de ignorar, sem constrangimentos, as normas constitucionais da autonomia universitária e da gestão democrática do ensino, ou de apresentar medida provisória que não atende às exigências de urgência e relevância, mas também o de justificar a MP com a lei 13.979, que estabeleceu medidas de proteção da coletividade durante a pandemia da covid-19. Nada há na lei que fundamente a indicação de reitores biônicos, até porque as consultas à comunidade universitária para elaboração de listas tríplices são feitas por via eletrônica. Isso significa que os princípios constitucionais da legalidade, moralidade e impessoalidade da administração pública também foram ignorados, pisoteados, enxovalhados pelo governo federal, para não falar, hipoteticamente, do desrespeito ao princípio da eficiência, considerando-se que os eventuais reitores pro tempore dançariam conforme a música do Ministério da Educação.

Deu no que deu: manifestações da sociedade e dos meios acadêmicos, ações de inconstitucionalidade ajuizadas, parlamentares mobilizados, todos perplexos com a desfaçatez do governo. Rapidamente, o presidente do Congresso devolveu a MP ao Executivo, devido à sua manifesta inconstitucionalidade. Na sequência, o presidente da República editou a MP 981, revogando a MP 979; a revogação teve como consequência adicional, provavelmente não intentada, impedir eventuais discussões acerca dos efeitos jurídicos da devolução. O desfecho negativo para o governo era previsível, embora pudesse variar no tempo em função do caminho adotado para derrubar a MP. É pouco plausível que assessores jurídicos do Planalto não o soubessem ou não tenham alertado o ministro e o presidente sobre a inconstitucionalidade da medida. Por que, então, baixá-la?

No começo de junho, a MP 914 que dispunha sobre a indicação de reitores para as universidades federais perdeu a vigência, por decurso de prazo, não sendo possível reeditá-la, na mesma legislatura, por determinação da Constituição. Mas esse fato, por si só, não justificaria, de nenhum modo, a edição da MP 979. A perda da eficácia da MP 914 restaurou a vigência do art. 16, da Lei 5.540/68, com redação da Lei 9192/95, que trata, justamente, da nomeação de reitores; não se estava, portanto, numa situação de anomia ou de lacuna legislativa. Outras justificativas seriam políticas: se, por um lado, a MP facilitaria passar a boiada, de outro, apresentava-se como compensação – com alto grau de discricionariedade – para o ministro que havia perdido o rico Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação para o Centrão. Também é possível que o intuito fosse atribuir ao Legislativo ou ao Judiciário o ônus de negar a Weintraub o que ele mais queria: o controle das universidades federais, locais de “balbúrdia” e de “plantações de maconha”, como já ensaiado no malfadado projeto Future-se. Ao que tudo indica e a julgar por suas declarações, a lição não foi aprendida: o ministro não desistiu da indicação dos reitores das universidades federais, nem esconde seus preconceitos e hostilidade com a atividade acadêmica em geral, especialmente na área de ciências humanas. Balançando no cargo, já há algum tempo, segue impávido, com o apoio do que há de pior no governo.

Cogitações à parte, o fato é que num país de pouca e recente tradição acadêmica, é baixo o grau de entendimento da autonomia como condição inerente às atividades de ensino e pesquisa, especialmente porque a atuação autônoma das universidades públicas sempre se dará em face do Estado, que as financia, o que evidentemente não justifica as atitudes do ministro da Educação. Durante o Império, a oferta do ensino superior no Brasil foi centralizada pelo governo, sem supervisão e com baixo investimento público, mas com autonomia docente no interior das faculdades. Após a proclamação da República, a primeira lei que concedeu autonomia didática e administrativa aos institutos federais de ensino superior é de 1911 e antecedeu a própria criação de universidades no País. Até a edição da atual Constituição de 1988 – que prevê a autonomia universitária em seu art. 207, cinco Constituições (1891, 1934, 1937, 1946, 1967), uma Emenda Constitucional (EC no. 1/69), seis reformas do ensino superior e diversos decretos federais definiram e regulamentaram a autonomia universitária. Nesse período, a participação da comunidade acadêmica na eleição de dirigentes foi suprimida entre 1915 e 1961, salvo no caso da Universidade de São Paulo, criada em 1934 em regime menos rígido que o das universidades federais, submetidas, à época, ao Estatuto das Universidades Brasileiras de 1930. A edição da Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1961 modificou o panorama com a previsão de autonomia didática, administrativa, financeira e disciplinar (art. 80), incluindo a elaboração de listas tríplices para escolha de reitor, o que foi mantido durante o governo militar na forma da Lei 5.540/68.

Sob o regime do art. 207 da Constituição de 1988, desenvolveram-se três estatutos jurídicos de autonomia universitária no País: o das universidades privadas, o das universidades federais e o das universidades estaduais paulistas. Se o modelo paulista se mostrou mais efetivo, devido à sua estrutura orçamentária e financeira baseada na transferência de percentual do ICMS às suas universidades e maior autonomia administrativa, os demais palmilharam caminhos diferentes. Para as 63 universidades federais, financiadas com recursos do Tesouro Nacional e algumas fontes alternativas (convênios, contratos, financiamento de pesquisas), problemas diversos de natureza administrativa e financeira (regime de caixa único, contingenciamento de despesas), peso da burocracia estatal e restrições inerentes ao regime de direito público tornaram-se fatores limitantes de sua autonomia. Comparativamente, as universidades privadas desfrutam de maior autonomia administrativa e financeira em virtude do regime jurídico privado, com vantagens para as instituições que optaram pelo regime mercantil. Essas diferenças demonstram que se, por um lado, não há tratamento jurídico uniforme para a autonomia, por outro, a proteção da autonomia universitária ainda é necessária em face de persistentes limitações, o que não é um problema jurídico, mas político, como o comprovam as ações do ministro da Educação.

As universidades não são os únicos entes dotados de autonomia pela Constituição. Os entes federados, por exemplo, têm autonomia política; o Judiciário, autonomia administrativa e financeira; os partidos políticos, autonomia administrativa. Essas concessões não são feitas ao acaso, mas visando ao melhor desempenho possível das finalidades dessas instituições. Tampouco significam independência ou soberania, como costumam proclamar os desafetos da autonomia, que têm suas prerrogativas enumeradas na LDB. No caso das universidades, a escolha de nomes para composição de lista tríplice destinada à indicação de reitores é uma das muitas prerrogativas inerentes à sua autonomia administrativa das universidades. Atualmente, tramitam na Câmara dos Deputados cerca de 100 projetos de lei e três PECs sobre as universidades e o ensino superior, dos quais pelo menos 12 tratam de eleição e escolha de dirigentes, sob diferentes enfoques, mas não para suprimir a elaboração da lista. Entre esses, dois propõem prorrogar os atuais mandatos de reitores e vice-reitores durante a pandemia e outro autoriza o uso de meios eletrônicos nas eleições. Todos esses projetos merecem acompanhamento e análise mais detalhada, oportunamente.

A interferência da União na autonomia das universidades, repita-se, é questão política, que revela graves litígios de natureza constitucional, até agora denunciados e impedidos pelas instituições democráticas. A edição das MPs 979 e 981 nada mais confirma senão desfaçatez no uso desse instrumento excepcional. Enquanto isso, só faz aumentar o descaso do ministro com os efeitos da pandemia sobre a educação nacional, com aumento da desigualdade e resultados sociais e econômicos desastrosos para esta e as futuras gerações, o que é crime, além de mostra de insanidade, insensibilidade e falta de respeito com a sociedade brasileira.

(*) Nina Ranieri é professora associada da Faculdade de Direito da USP e coordenadora da Cátedra Unesco de Direito à Educação.

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