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Artigos

Sobre o direito de imaginar e criar futuros

Jean Nunes Pinto e Nilton Mullet Pereira (*) | 10/07/2021 08:27

O fascinante mundo das séries de televisão tem criado formas muito sofisticadas de narrar o passado e de problematizar o presente. São inúmeros os exemplos desses produtos culturais que habitam a televisão há muito tempo e que agora estão disponíveis também nas plataformas de streaming. Poderíamos dar exemplos de uma quantidade significativa desses produtos culturais que nos convidam a pensar sobre o que aconteceu, sobre o que acontece ou, ainda, sobre o que poderia ter acontecido na história. O sucesso de Game of Thrones, Outlander ou Vikings mostra que os temas de reis e de rainhas, da nobreza ou mesmo dos mitos nórdicos são os mais recorrentes, mas, certamente, as Séries recobrem um universo de questões muito mais amplo.

O passado, o presente e a imaginação sobre o futuro são recortes que nos permitem supor que as Séries podem ser fábricas de histórias, de crítica e de pensamento. Neste artigo, vamos examinar uma dessas Séries, a norte-americana Watchmen (2019), da rede HBO. Watchmen não apenas trata de um aspecto importante do passado dos Estados Unidos (o massacre da comunidade negra em Tulsa, Oklahoma), como nos faz questionar o presente (especificamente, o negacionismo histórico, o racismo e a discriminação) e nos convida a imaginar o futuro. Este artigo propõe um debate sobre como a História, conteúdo de ensino da Escola Básica, pode aprender com o tipo de relação com o tempo que a Série nos proporciona, permitindo, num diálogo com a História e com diversos outros saberes, aprender sobre o passado, sobre nós mesmos e constituir alternativas para o futuro.

Watchmen: os quadrinhos e a Série

Os anos 1980 foram mágicos e revolucionários para a arte dos quadrinhos. Em primeiro lugar, porque muitas das produções deste período assumiram uma forte crítica social, algo até então incomum. Ademais, muitas dessas novas histórias eram escritas para um público adulto. A DC Comics, uma das maiores editoras de quadrinhos do mundo, controlada pela Warner Media, esteve à frente desse processo. Ela foi responsável pela publicação de obras que se tornaram paradigmáticas da nova “arte sequencial”, caso de Batman: O Cavaleiro das Trevas (história de Frank Miller, com ilustrações de Frank Miller, Lynn Varley, Klaus Janson) e de Watchmen, escrito por Alan Moore e com desenhos de Dave Gibbons.

Em 2019, o roteirista e produtor Damon Lindelof, cocriador e produtor executivo da Série Lost, adaptou Watchmen para a televisão. Em Watchmen, a Série televisiva, a detetive Angela Abar (Regina King) usa a identidade secreta da personagem Sister Night para investigar um antigo grupo de supremacistas brancos, mais conhecido como a Sétima Kavalaria, responsável, há décadas, por inúmeros ataques racistas nos Estados Unidos. A Série se passa em uma realidade alternativa na qual os Estados Unidos venceram a Guerra do Vietnã e o transformaram em mais um estado americano, graças à ajuda de um “super-herói” chamado Dr. Manhattan (Jonathan Osterman). Nessa realidade, os supremacistas brancos (que querem os poderes excepcionais do Dr. Manhattan) estão infiltrados na política e no poder, e a maioria dos “verdadeiros heróis” da história não possuem superpoderes; são pessoas comuns, via de regra, policiais que defendem a sociedade escondidos por trás de máscaras, de modo a não serem reconhecidos. Esses acontecimentos ocorreriam 34 anos após a história da HQ.

O centro da problemática que nos levou à essa Série foi o fato de ela imaginar uma sociedade em que pessoas negras passaram a ter acesso aos bens, e isso despertou a ira de pessoas que não aceitavam tal situação, particularmente os supremacistas brancos da Sétima Kavalaria. Desse modo, a reação à perda de privilégios foi forte e violenta. A partir de um acontecimento muito triste na história dos EUA, o massacre de Tulsa, Watchmen se propõe a imaginar como seria uma sociedade na qual, após o referido massacre, políticas de reparação à população negra passam a ser levadas a efeito. E a reação a esse novo mundo imaginário e aos atentados contra a população negra – que se passam nos tempos atuais, em 2019 – foi o renascimento da KKK, na forma da Sétima Kavalaria, tendo como base discursos negacionistas que procuravam minimizar os efeitos da escravização e do racismo, num evidente processo de culpabilização das vítimas.

O massacre de Tulsa foi o acontecimento histórico fonte das primeiras cenas do episódio inicial da Série. O bairro de Greenwood, em Tulsa, ficou conhecido, no início do século XX, como a Wall Street Negra – “uma das mais bem-sucedidas comunidades negras em um país que somente poucas décadas antes havia abolido a escravidão” – e atraiu empreendedores e comerciantes negros. A prosperidade da comunidade negra de Tulsa e as tensões raciais que faziam parte da vida dos estadunidenses estão na base desse massacre. Em 1920, mais de mil estabelecimentos da Wall Street Negra foram saqueados e incendiados; historiadores apontam que aproximadamente 300 pessoas foram mortas.

A Série explora adequadamente esse evento, uma vez que a ascensão social e a qualidade de vida das populações negras lá nos anos 20 e aqui no século XXI acendem e intensificam tanto o negacionismo quanto a reação às políticas de reparação e às políticas afirmativas existentes hoje não só nos EUA como no Brasil. A Série enfatiza, por exemplo, que no ano de 2019 foi “aprovada uma lei sobre Vítimas da Violência Racial que pretende reparar as vítimas e os descendentes de vítimas de crimes de ódio racial ao longo da história”. Essa política de reparação é alvo dos novos supremacistas brancos, a Sétima Kavalaria.

Watchmen nos auxilia a mostrar para os estudantes o quão nefastas são as atitudes de supremacistas brancos e de todas as pessoas que, nos tempos atuais, desde sua suposta humanidade, continuam a prolongar as hierarquias raciais e sociais por meio da continuidade de discursos negacionistas. Watchmen mostra o que poderia acontecer se as ações afirmativas conseguissem atingir a todos que necessitam delas. Nessa sociedade imaginária, podemos ver pessoas negras com carros de classe média, morando em um bairro suburbano, tendo uma qualidade de vida que está longe de ser a realidade de muitos brasileiros e de muitos estadunidenses. A Série se esforça em mostrar também que os negacionistas e supremacistas de todo o tipo negam a igualdade racial e social, agindo para sabotar essas conquistas.

O uso de uma Série como Watchmen pode ser um modo de, por um lado, deixar a sala de aula habitada por relações com o passado que não apenas a mediada pela História dos historiadores e, com humildade, podermos utilizar a potência imaginativa da arte para aprender história e para problematizar o presente. Por outro lado, a complexidade do modo como a Série aborda o tema do racismo, do negacionismo e do futuro nos permite potencializar a criação e a ação dos jovens em relação a si mesmos e ao seu mundo. Isso se dá na medida em que são levados a pensar em seu lugar e no modo como se comportam diante do racismo e diante de um mundo construído na base de privilégios para, então, imaginar novos futuros.

Imaginação e aula de História combatendo o racismo

Certamente, nos tempos pós-pandemia, nossas aulas de História serão levadas a debates muito importantes sobre a natureza do conhecimento que produzimos sobre o passado e sobre os modos pelos quais, hoje, esse conhecimento tem sido continuamente contestado por movimentos, nada recentes, que chamamos de negacionistas.

Isso implica contestar as práticas negacionistas e, ao mesmo tempo, devolver à História e ao seu ensino uma poética e uma política da imaginação, ensejando que se possa ter o passado como uma abertura inesgotável para imaginar futuros.

Nesse sentido, pensamos em aprender com outros modos de constituir relações com o passado, como as Séries televisivas ou as histórias em quadrinhos, que conseguem imaginar mundos que ainda não existem, mas que têm uma dimensão política e ética de alta significação para contestar a aridez e a clausura produzidas pelos negacionismos e pelo racismo, bem como pelas hierarquias sociais, raciais ou de gênero com as quais convivemos hoje. E, por isso, pensamos que Watchmen pode ser uma entrada muito rica no universo da imaginação, com uma forte crítica à realidade das relações raciais de ontem e de hoje.

Logo, pensamos que imaginar o passado e o futuro não são atitudes desinteressadas, mas respostas alternativas aos problemas do nosso presente. Assim, imaginar o passado, desde a pesquisa historiográfica, implica um comprometimento ético com o presente, com as pessoas e com os seres que habitam a Terra. Isso quer dizer que quando estudamos o passado nunca o fazemos sem uma inserção também no presente e no futuro. O passado é um repertório de experiências que nos permitem aprender sobre ele e sobre nós mesmos. É o que nos ensina Watchmen ao tematizar o massacre de Tulsa. Quando nos pomos a assistir a uma Série como essa e a inseri-la em uma aula de História, estamos em busca de oferecer de uma só vez a problematização do passado, do presente e do futuro.

E aí podemos elaborar perguntas: como nos tornamos racistas?; como se constituíram relações hierárquicas baseadas na cor da pele?; como, ainda hoje, no Brasil, a desigualdade racial é elemento central para o acesso aos bens públicos e para a própria proteção à vida?; como, ainda hoje, pessoas negam que tenha ocorrido a escravização?; como podem existir movimentos que contestam as políticas de reparação e as políticas afirmativas?.

Desse modo, não é de surpreender que o negacionismo tenha ganhado tanto espaço nos tempos atuais. Como na imaginação de Watchmen, que cria os supremacistas da Sétima Kavalaria para frear o avanço das políticas de reparação e o bem-estar dos negros e das negras, o negacionismo, aqui, na realidade brasileira, produz efeitos catastróficos: há uma série de tentativas de comprovar teses estranhas à verdade histórica, tendo como base apenas opiniões que não são criadas a partir de documentos ou fontes da época – fontes estas que dão seriedade e consistência ao que se produz sobre a história e sobre a vida das pessoas.

Um dos casos mais notáveis é a ideia de que Zumbi, líder do quilombo dos Palmares, seria um dono ou proprietário de escravos. Tal opinião não se vale de qualquer base empírica, uma vez que a história de Zumbi ou mesmo os dados sobre sua personalidade são bastante difíceis de se determinar historicamente em função da falta de fontes para tanto. Além do mais, tal ideia não tem relevância para o estudo da escravização de povos africanos no Brasil. O que nos parece, portanto, é que tal noção tem como resultado a destituição da imagem de Zumbi, o que tem como efeito a minimização dos danos da escravidão às pessoas negras no Brasil, passando a ideia de que a escravização era algo comum que até os negros o faziam. Ora, a escravização dos povos africanos na América e, particularmente, no Brasil foi uma prática cruel e desumana, que servia aos interesses comerciais das nações europeias em seu processo de exploração das riquezas aqui encontradas. Em nada tal processo se assemelha ao que teria sido Palmares e em nada se assemelha aos propósitos e à luta de Zumbi.

Essa associação entre Zumbi e os senhores escravocratas (contra quem aquele lutava) é uma ação que diminui a intensidade de um dos crimes mais hediondos da história da humanidade, cometidos na época colonial e imperial do Brasil. Os efeitos são muitos: perpetuar atitudes racistas; reproduzir o racismo estrutural; mitigar ações como as cotas em universidade públicas e as criminalizações de atitudes racistas; relativizar a violência sofrida pela população negra, tanto pela ação direta do governo como pela ação indireta, sendo que este faz questão de não estar presente, não fazendo investimentos em áreas da saúde e educação.

Nos perguntamos, então, o que a aula de História tem a ver com isso? Como uma aula de História pode fazer valer a pesquisa baseada em conceitos, métodos e documentos frente a opiniões sem qualquer base teórica e material/real, mas que possuem um forte poder de persuasão e acabam por ter adesão de milhares de pessoas?

Quando construímos uma aula que incorpore elementos da realidade dos estudantes, não apenas questionamos discursos negacionistas, mas aumentamos o interesse e o sentido da história na vida desses estudantes, pois permitiremos que alunos e alunas consigam realizar conexões da história que ensinamos com a sua realidade, o que dará um novo sentido àquele saber. Desse modo, as estudantes poderão se apropriar dos saberes construídos pela História, problematizar o seu presente e imaginar novos futuros. A aula de História que se utiliza das Séries (ou do cinema, dos quadrinhos, dos jogos, etc.) se torna uma maneira de compreender a estrutura em que estamos inseridos por meio de linguagens disponíveis no mundo dos jovens, possibilitando que possamos combater as mazelas dessa estrutura.

(*) Jean Nunes Pinto é estudante de História, bolsista de Iniciação Científica na UFRGS.

(*) Nilton Mullet Pereira é professor da Faculdade de Educação e do ProfHistória – Mestrado Profissional em ensino de História – IFCH – UFRGS.

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