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Tucídides e o coronavírus

José Nun (*) | 04/08/2020 10:58

Em graus diversos, segundo as idades e os lugares, estamos preocupados com a aparição e a difusão da covid-19. Diariamente, agitam-nos com cifras, e a maioria dos debates gira em torno de uma questionável oposição entre a saúde e a economia.

Falta, porém, outro tipo de reflexão. Por isso, e já que o confinamento nos impede viajar no espaço, proponho que viajemos no tempo. Convido o leitor a retroceder uns 2.500 anos, porque creio que se surpreenderá. Espera-nos ali Tucídides. Quem é ele? Um ateniense que desde então disputa com Heródoto o título de fundador da história escrita. No ano 431 a.C. rebentou uma grande guerra entre Atenas e Esparta.

Tucídides tomou parte ativa nela, mas caiu vítima da praga que açoitou Atenas em 430 a.C., liquidando a quarta parte da população. Sem embargo, conseguiu recompor-se e voltou a combater. Só que a frota que comandava foi vencida e o condenaram ao exílio. Isso permitiu que ele viajasse e escrevesse sua monumental História da Guerra do Peloponeso, que ficou inconclusa mas o tornou justamente famoso, dando razão à sua advertência: “Minha obra não é um texto pensado para satisfazer a um público imediato, mas para durar para sempre”.

Brinda-nos nela uma das melhores descrições de uma epidemia que se conhece. Ao examinar minuciosamente seus sintomas, Tucídides ratifica sua aspiração. Ele o faz, diz, “para que os médicos possam reconhecê-la se voltar a ocorrer”. Vejamos algumas passagens do seu texto.

A gente – conta-nos – morria como moscas. O medo do contágio levou a que ninguém quisesse ter o outro perto. “Alguns fogem da cidade e rumam para seus campos; outros se fecham em suas casas e não deixam ninguém entrar. Todos se evitam. Sua última esperança é manter a distância (…), mesmo de seus parentes mais próximos, seus pais, seus esposos ou esposas e seus filhos.” Até mesmo abandonam-se os ritos funerários e os mortos são enterrados ou incinerados de qualquer maneira.

Cito uma observação particularmente aguda: “O resultado final de uma epidemia pode ser o mesmo que o de um terremoto; mas numa epidemia a gente vê como a morte avança diante de seus olhos”. É uma batalha na qual “só o inimigo está ativo” e ninguém sabe se vai durar um par de meses, um ano ou mais.

Havia uns poucos que, como ele, se recuperavam e se sentiam muito felizes, “porque ninguém é atacado duas vezes pela enfermidade e, se isso ocorre, o segundo ataque nunca é fatal”. Daí que “seu entusiasmo ao curar-se era tão grande que imaginavam que não morreriam de nenhuma outra enfermidade no futuro”.

Se não bastasse o exposto para comprovar a atualidade do retrato de uma praga traçado dois milênios e meio atrás, uma reflexão de Tucídides mereceria ser explorada em profundidade ainda hoje: “Nenhum medo de deus ou das leis humanas pode ter um efeito dissuasivo. Quanto aos deuses, dá no mesmo tê-los adorado ou não, uma vez que os bons e os maus morrem indiscriminadamente”. E no que concerne às leis humanas, “ninguém espera viver o suficiente para ser julgado e castigado” e, como é muito provável que já tenham sido sentenciados, “é natural que existam aqueles que querem dar-se em vida todos os gostos que possam”.

Façamos o regresso. Mas antes notemos que, por idêntico motivo, duas preocupações se fizeram estranhas ao grande historiador grego. Uma é a origem da praga. Tratou-se, pensava, de uma catástrofe natural e, portanto, a vontade dos deuses a determinou. Isso faz com que tampouco se encontre ao alcance dos humanos prevenir pestes futuras.

O mesmo iria crer Lutero 2 mil anos depois, quando sua cidade de Wittenberg se viu sacudida por uma epidemia e escreveu um notável panfleto intitulado Como Escapar de uma Praga Mortal. Ele afirma ali que se trata de um castigo de Deus e que deve ser aceito porque todos somos pecadores. Ou seja, que não se deve culpar a ninguém e não se sabe quando nem onde se repetirá.

Estamos hoje em melhor situação para responder a essas preocupações? Certamente sim, mas com importantes reservas. Explico-me. Antes de tudo, é óbvio que nosso mundo é radicalmente distinto do de Tucídides. Em sua época, a maior parte da gente vivia em pequenas comunidades rurais e ocupava uma porção ínfima das terras habitáveis para a agricultura.

E mais: desde então se passaram 2.200 anos até que, em 1800, a população do planeta chegou a 1 milhão, mas apenas 220 anos depois já se aproxima dos 8 milhões, e muito mais da metade se concentra nas cidades. Na era moderna os progressos da ciência e da tecnologia foram prodigiosos, ainda que nem sempre para bem. E hoje os grandes laboratórios desafiam os deuses em sua busca por uma vacina contra a covid-19.

Por que minhas reservas? Porque não é nada casual que se aproveite o lógico medo coletivo para canalizá-lo exclusivamente para a luta contra o coronavírus, evitando que se tome consciência do contexto que favoreceu sua aparição e que seguirá sendo uma ameaça crescente para o planeta, ainda que se consiga controlá-lo. A vontade dos humanos substituiu agora a vontade dos deuses.

Primeiramente, a covid-19 é uma zoonose, nome das enfermidades viróticas que passam dos animais para os seres humanos desde que estes últimos começaram a destruir seus hábitats e a arruinar os ecossistemas que os abrigam. É que ingressamos numa era antropocêntrica que provocou uma brutal devastação da vida silvestre. Desse modo, ao esgotamento dos recursos naturais se soma uma perda constante da biodiversidade.

A que se deve? A uma soma de fatores, liderados pelas mudanças climáticas. Segundo um informe das Nações Unidas (2018), a temperatura terrestre aumentou 1ºC em relação aos níveis pré-industriais. As consequências são os incêndios que arrasam a Austrália, as inundações que sofre a Indonésia ou o rápido desaparecimento do Ártico. Qual é a causa do aumento? A crescente emissão dos chamados “gases de efeito estufa”, que o dióxido de carbono (CO2) encabeça. Em meio século, suas emissões triplicaram.

A maior responsabilidade cabe ao uso de combustíveis fósseis, como o carvão, o petróleo e o gás, que atualmente proveem quase 2/3 da energia mundial. A isso se acrescenta o desmatamento (que libera o CO2 retido na madeira das árvores), a megamineração a céu aberto, o paulatino esgotamento de esponjas naturais, como os oceanos, e o descontrolado crescimento urbano, com todas as suas sequelas. Agora se sabe que cada meio grau de aumento da temperatura incrementa a frequência e a intensidade das tormentas, os incêndios, as inundações e as secas, que destroem os ecossistemas e expulsam os animais, que invadem povoados e cidades.

Também com relação com as zoonoses, o biólogo Robert Wallace aponta a criação industrial de animais, isto é, um sistema agropecuário que dá lugar à reprodução de vírus e bactérias muito resistentes, que os seres humanos retransmitem. Em uma palavra, as gerações futuras se surpreenderão de que os grandes interesses econômicos e políticos do Ocidente e do Oriente estejam conseguindo limitar à covid-19 um debate mais amplo sobre as transformações de fundo capazes de preservá-las de novas catástrofes. E é de aplaudir que tantos jovens estejam analisando já essas questões. Gostemos ou não, nossa incerteza é semelhante à de 2.500 anos. “O verdadeiro, o terrível inimigo é o erro no cálculo e na previsão”, escreveu Tucídides.

(*) José Nun é advogado, escritor, ensaísta e ex-ministro da Cultura da Argentina (2004-2009)

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