Um encontro necessário com a China e a Índia
As Relações Internacionais do Brasil, historicamente, têm oscilado entre a autonomia e a autossubordinação a determinadas potências. Há fases em que uma visão estratégica de projeto nacional predomina e, pragmaticamente, os interesses do desenvolvimento acabam orientando a política externa. Em outros momentos, todavia, as clivagens político-ideológicas e socioeconômicas domésticas se refletem na relação com o mundo. No primeiro caso, no geral, predominou a visão de autonomia e barganha diplomáticas, enquanto, no segundo, há alinhamentos automáticos, rígidos e subordinados, predominantemente autoimpostos – contra toda a lógica de custo-benefício.
Quando ocorrem mudanças de regime (como em 1889, 1930-37, 1945, 1964 e 1985) ou de governo com acentuada alteração política, há reflexos nas relações exteriores. Uma vez consolidado o novo poder, tornando desnecessária uma narrativa ideológica afirmativa, normalmente há certa “correção de rumos”, como nos casos de Vargas e do Regime Militar. Tais alterações ocorreram tendo em conta uma análise acurada da realidade mundial e das necessidades materiais do país.
Os momentos mais bem-sucedidos das Relações Internacionais do Brasil foram, neste contexto, de busca de autonomia, como forma de potencializar a capacidade de barganha entre potências que disputam o poder mundial. Vargas somente se alinhou aos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial quando importantes demandas brasileiras (siderurgia e outras) haviam sido atendidas por Washington. Trata-se da arte da negociação, pois nenhum país oferece vantagens a um aliado mais fraco que já esteja alinhado. O Regime Militar, após atingir seus objetivos domésticos, defrontou-se com a contradição entre o discurso e a prática do aliado norte-americano e procedeu aos ajustes necessários.
O Acordo Nuclear com a Alemanha, o econômico com o Japão, a arrojada diplomacia para a África e o Oriente Médio e, finalmente, o estabelecimento de relações com a China Popular fizeram a economia decolar. Mesmo sob o neoliberalismo globalista dos dois Fernandos (Collor e Cardoso), o Itamaraty tomou cuidados, com uma diplomacia multilateral ativa e com a integração do Mercosul. Lula abriu novas oportunidades, talvez muito ousadas para nossos limitados recursos de poder e divisão interna, mas jamais alinhou o Brasil. A participação no BRICS não implicou qualquer afastamento em relação à Europa e aos EUA, inclusive durante o governo Bush Jr.
O que houve foi que a crise econômica mundial, a partir de 2008, gerou tensões internacionais, pois, enquanto as dificuldades cresciam em torno do Atlântico Norte, a economia da China e da Índia seguiam crescendo. A desmontagem do BRICS pareceu se tornar o foco das antigas potências do Norte, o que se acentuou com o governo Trump. Então, a diplomacia brasileira, sob o atual governo, tomou um rumo insólito, pois quanto mais crescia o percentual das exportações para a China, mais os atritos político-ideológicos se acentuavam. As medidas comerciais restritivas estadunidenses não foram apenas contra a China, mas também contra a Índia, a Europa e o Brasil, “aliados” da Casa Branca. A pandemia só fez acentuar o problema, especialmente com a geopolítica das vacinas.
O Brasil necessita da China não apenas para exportar commodities (ferro, soja), mas também para atrair investimentos, visando modernizar a infraestrutura de transportes (rodovias, ferrovias e portos), telecomunicações e energia (geração e distribuição), o verdadeiro “custo Brasil”. Isso, inclusive, atrairia outros investimentos europeus e norte-americanos em áreas de seu interesse, a tal ponto que o empresariado, militares e renomados diplomatas (aposentados) têm cobrado uma diplomacia mais realista por parte do governo. A necessidade de vacinas agravou o quadro, uma vez que os laboratórios privados euro-americanos estão mais interessados em seu próprio abastecimento, enquanto chineses e russos têm apoiado, habilmente, as nações mais vulneráveis.
Além de a China estar se tornando, gradualmente, a maior economia mundial, o leste e o sul da Ásia concentram mais da metade da população mundial, demandando crescentes volumes de importações. E uma diplomacia alinhada tira a capacidade de barganha do Brasil. Como lembrou José Miguel Martins, professor de Relações Internacionais da UFRGS, os EUA e a China são “as duas maiores economias do mundo. Isso importa ao Brasil, para que se mantenha uma postura de neutralidade. Eles poderão perdoar-se reciprocamente, mas dificilmente o farão com terceiros”.
Ou seja, podem chegar a algum acordo ou conflito aberto no futuro, deixando-nos em uma posição difícil. Até agora a sabedoria milenar e a paciência asiática têm evitado o pior, mas o Brasil necessita manter sua tradição diplomática e avaliar estrategicamente o cenário atual e futuro (pós-pandemia). O quadro que se desenha é o de enormes dificuldades econômicas globais, e há que tirar proveito do fato de fazermos parte de um seleto grupo de meia dúzia de países que mantêm relações diplomáticas com todas as nações do planeta, contribuindo para a paz e o desenvolvimento. Assim, frente às pressões e necessidades atuais e futuras, é necessário manter boas relações e autonomia frente a todos, inclusive às vorazes potências da Ásia. Elas representam sérios desafios e, também, boas oportunidades. Negócios e ideologia não caminham juntos, e os gigantes asiáticos não são “bonzinhos”, apenas defendem seus interesses – como o Brasil também deveria fazer.
(*) Paulo Fagundes Visentini é professor titular de Relações Internacionais e coordenador do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais/CEGOV-UFRGS