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Uma reforma para dividir

Por Carlota Boto (*) | 28/11/2016 09:21

A reforma do ensino médio, proposta por medida provisória, tem recebido todas as críticas por todos os lados. E de fato: imposta de cima para baixo, ela desconsidera os problemas estruturais do ensino médio brasileiro, seja a má formação dos professores, seja o número dos alunos por classe, seja a defasagem da escola perante as novas tecnologias do mundo digital.

O projeto procura romper com o modelo disciplinar, destacando que o “currículo do Ensino Médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos específicos, a serem definidos pelos sistemas de ensino, com ênfase nas seguintes áreas de conhecimento ou de atuação profissional: I) Linguagens; II) Matemática; III) Ciências da Natureza; IV) Ciências Humanas; V) Formação técnica e profissional”.

O ensino de matemática e de português é obrigatório nos três anos de ensino médio. Outras matérias passam a ser, assim, facultadas a um ano ou outro do currículo. Há aqui uma brecha para acabar com o ensino de Sociologia e de Filosofia. Haverá a inclusão obrigatória do estudo da língua inglesa e outras línguas estrangeiras também poderão ser ofertadas em caráter facultativo.

A ideia de não colocar as disciplinas nos três anos tem como argumento o fato de que os alunos abandonam a escola porque teriam de cursar muitas matérias. Além disso, outro aspecto que chama atenção na medida provisória do ministro Mendonça Filho diz respeito ao fato de se possibilitar a docência a profissionais com notório saber, sem formação específica na área.

Essa perspectiva é por si mesma assustadora. Ninguém imaginaria ser legítimo que um médico operasse um paciente por ser portador de notório saber, sem formação específica de curso de medicina. Alguém assim seria chamado de charlatão e não de médico. O mesmo se daria para um advogado que não tivesse formação e bacharelado em Direito (ou até o exame da Ordem)… No entanto, para o Ministério da Educação, no que diz respeito ao magistério da Educação Básica, a situação é diferente: qualquer um pode ser professor.

Quanto às razões para a juventude abandonar o ensino médio, bem como as razões para esse nível de ensino ter resultados pífios nas avaliações, outras variáveis, com as quais a medida provisória não lida, devem ser consideradas. Tempos atrás, quando as crianças e jovens iam para a escola, levavam para lá o que haviam aprendido em casa com seus pais.

Hoje, o mundo mudou. As novas ferramentas das tecnologias digitais fazem com que as crianças e jovens cheguem à escola com um novo repertório, um tipo novo de leitura de mundo, com o qual a escola ainda não sabe dialogar. Nesse sentido, o ensino formal torna-se pouco atraente para os jovens.

Sem alterar a estrutura dos métodos de ensino e dos conteúdos programáticos trabalhados em sala de aula, nada será transformado. E tal dimensão não está tão atada às reformas. Diz respeito a uma dimensão de cultura escolar, que leva a que a escola seja fruto da sua própria história e em que os conteúdos trabalhados em sala de aula sejam mais próximos dos conteúdos que eram trabalhados na escola do passado do que do avanço do conhecimento em cada área específica.

A escola, assim, não é apenas reprodutora de uma cultura que lhe é externa, mas é ela própria produtora de cultura. E essa cultura pode estar desfibrada se nós deixarmos de ponderar sobre as expectativas e as motivações dos jovens estudantes. Isso, a medida provisória desconsidera.

Por fim, no que toca à formação dos professores, a ideia do notório saber como alternativa à profissionalidade docente é absurda. Tal perspectiva por si quebraria a espinha dorsal de todos os cursos de formação de professores do País.

E partiria de um princípio extremamente complicado, segundo o qual qualquer um ensina qualquer coisa a qualquer pessoa. Vai na contramão de todas as tendências e correntes teóricas e práticas que, desde o século 19, identificam a necessidade de uma formação específica como sendo exigência para o preparo de professores.

António Nóvoa, historiador da educação portuguesa, demonstra que, em diferentes países, a profissionalização da profissão professor ocorreu em quatro etapas, que se deram sucessivamente: em primeiro lugar, ser professor tornou-se uma profissão a tempo inteiro; ou seja, os professores deixaram de dividir seu tempo com outros ofícios que faziam paralelamente.

A seguir, deu-se o estabelecimento de um “suporte legal para o exercício da atividade docente”. Foi quando surgiram concursos de ingresso na carreira do magistério. A terceira etapa da profissionalização da profissão professor ocorreu a partir da criação de instituições específicas de formação dos professores. E, finalmente, constituíram-se associações profissionais que deram voz à categoria dos professores. E essas quatro fases foram fundamentais para a construção de uma identidade do profissional docente. A medida provisória do governo federal, de uma penada, quer acabar com séculos de construção da história do profissionalismo do magistério.

Cabe dizer ainda que esse projeto de reforma vem de cima e desconsidera também décadas de debates que vêm ocorrendo em todos os fóruns de educação nacional. Não se trata, portanto, de um projeto para somar; mas tem toda a característica de saber bem dividir.

(*) Carlota Boto é professora da Faculdade de Educação da USP

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