Visibilidade trans, na mira da extrema direita
Primeiro eles vieram buscar as pessoas trans, e o mundo assistiu calado, porque era cisgênero. Este seria muito provavelmente o verso de abertura do poema, caso o finado pastor e teólogo alemão Martin Niemöller (1892–1984) quisesse atualizar o seu lamento pós-guerra sobre a inação, o silêncio e a indiferença que permitiram as atrocidades cometidas pelo regime nazista. Que a cisgeneridade assiste indiferente ao genocídio velado de corpas trans, sabemos pelo menos desde 2008, quando a organização internacional e sem fins lucrativos Trangender Europe (TGEU) começou a monitorar os assassinatos de pessoas trans globalmente. Desde então foram registrados pelo menos cinco mil assassinatos. Notadamente, em 2024 houve um aumento de cerca de 9%, com pelo menos 350 casos documentados, 30% dos quais ocorridos no Brasil, país que pelo décimo sétimo ano consecutivo lidera tal inglória lista.
Esses números apenas confirmam o que nós, pessoas trans, tentamos há anos denunciar: a violência de cunho transfóbico só tem aumentado. Essa escalada tem sido potencializada por um discurso de ódio transfóbico cada vez mais mobilizado pelos setores conservadores da socisedade, em uma aliança insólita entre grupos religiosos, feministas radicais transexcludentes e neofascistas. Exemplos não faltam. Comecemos pela recente alteração que a Meta, empresa de Mark Zuckerberg responsável pelo Facebook, Instagram, WhatsApp, entre outros, fez um sua política contra o discurso de ódio. As novas diretrizes passaram a permitir explicitamente a patologização de identidades de gênero e orientações sexuais:
“Nós permitimos alegações de doença mental ou anormalidade quando baseadas em gênero ou orientação sexual, dado o discurso político e religioso sobre transgenerismo [sic] e homossexualidade.”
Além disso, ao usar “transgenderismo”, no lugar de transgeneridade, enfatizam a sua intenção em desumanizar as pessoas trans e com isso justificar a discriminação e a violência que sofrem. Trata-se de um termo que tem sido apropriado pelo movimento antigênero e, mais recentemente pelo feminismo radical transexcludente, para denotar de uma forma incorreta e maliciosa que ser trans é uma ideologia política e não um aspecto fundamental da identidade de uma pessoa (da mesma forma que ser cisgênero), reduzindo-o a uma mera opinião e, por isso, passível de ser debatida.
Junto com essas modificações veio o desmantelamento do programa de Diversidade, Equidade e Inclusão da empresa, bem como a descontinuação da checagem independente de fatos, substituída pelas “notas da comunidade”, em um movimento semelhante ao adotado pelo ex-twitter sob o controle de Elon Musk. Nas palavras do próprio Mark Zuckerberg, os moderadores profissionais são “muito tendenciosos politicamente”, de forma que já passou da “hora de retornarmos às nossas raízes, em torno da liberdade de expressão”. O enfraquecimento desses mecanismos de controle sinaliza o alinhamento dessas plataformas com o discurso neofascista. De fato, ao analisar 32 milhões de tuítes postados por políticos em 26 países, entre 2017 e 2022, um estudo recente estabeleceu que as fake news são itens exclusivos do arsenal da extrema direita contemporânea em sua cruzada contra as instituições democráticas. Assim, Zuckerberg e Musk pavimentam o caminho para as corjas de líderes autoritários utilizarem a desinformação para obterem benefícios políticos em um ambiente midiático e de baixa confiança política.
É neste ambiente hostil que as mais diversas falácias sobre as pessoas trans são mobilizadas como armas políticas. A exemplo do que aconteceu no último ciclo eleitoral estadunidense, em que o gasto do partido republicano com publicidade antitrans superou qualquer outro, levando a slogans como “Kamala é a favor delus. O presidente Trump cuida de você!” ou da promessa do vereador mais votado em São Paulo, Lucas Pavanato (PL), de “proibir utilização de banheiro oposto ao sexo biológico”. Estabeleceu-se, assim, um cenário perfeito de pânico moral para que se deflagrasse uma pandemia legislativa antitrans, cujo sintoma mais aparente é o crescimento exponencial da proposição de projetos de lei que visam de alguma forma cercear os direitos e as oportunidades para pessoas trans ao longo dos últimos cinco anos.
Apesar de terem gozado, até agora, de uma baixa taxa de aprovação, essas leis não apenas exacerbam os desafios já enfrentados pela população trans, mas criam estressores novos e particularmente prejudiciais à sua saúde mental. De fato, pessoas trans, sobretudo as mais jovens, já correm um risco maior de enfrentar problemas de saúde mental decorrente do chamado estresse de minoria, que pode ser compreendido como o estresse devido a experiências negativas associadas ao estigma e preconceito que acometem pessoas de grupos marginalizados. Nesse contexto, as leis antitrans, ao sinalizarem uma rejeição social ainda mais ampla, enfatizando que suas identidades e corpos não são válidos nem dignos de proteção, podem atuar como uma forma estrutural desse estresse de minoria, agravando problemas de saúde mental ou criando novos. Além disso, a teoria interpessoal do suicídio sugere que se sentir um fardo ou desconectado dos outros pode induzir ideações suicidas e que a repetição da dor ou de experiências indutoras de medo pode levar ao comportamento suicida. Dessa forma, não surpreende, infelizmente, que tenha sido estabelecida uma relação entre a promulgação de leis antitrans e um aumento significativo das tentativas de suicídios de jovens trans. Ao analisarem o efeito da promulgação de 48 leis estaduais em 19 estados dos Estados Unidos no período de 2018 a 2022, Lee e colaboradores estimaram um aumento de até 72% no número de tentativas de suicídio de pessoas trans com idades entre 13 e 17 anos.
Definitivamente, não era essa a visibilidade que almejavam as ativistas transgênero que ocuparam, no dia 29 de janeiro de 2004, o Congresso Nacional para se manifestar em prol da campanha Travesti e Respeito. O evento marcou um ponto de inflexão nas políticas públicas voltadas para a população trans no Brasil, levando a diversas conquistas como: a garantia do uso do nome social no SUS (2006), o oferecimento de cirurgias de readequação genital pelo SUS (2008), a criação da Política Nacional de Saúde Integral LGBT (2011), a inclusão do nome social em escolas, universidades e boletins de ocorrência policial (2015), a retificação de nome e gênero no registro civil nos cartórios (2018), a equiparação da LGBTfobia ao crime de racismo (2019) e a extensão da Lei Maria da Penha a mulheres trans e travestis (2022). Longe de ser um ponto isolado, os avanços obtidos pela população trans no Brasil estavam em sintonia com as reivindicações e conquistas da comunidade trans internacional que, dentre outras coisas, fez com que a transexualidade deixasse de ser considerada um transtorno mental pela Organização Mundial da Saúde em 2019. Portanto, essa pandemia legislativa antitrans corresponde apenas a um ato desesperado e truculento de uma socisedade conservadora e moribunda que inciste em não aceitar que as hipóteses que sustentavam a sua visão distorcida de mundo foram uma a uma refutadas ao longo das duas últimas décadas.
Termino este texto com o conselho que Gandalf deu a Frodo logo no começo de sua jornada à Montanha da Perdição: “Não nos cabe escolher o tempo em que vivemos, mas o que faremos com esse tempo”. Não deixemos, então, que a inação, o silêncio e a indiferença permitam que as atrocidades lamentadas por Niemöller se repitam.
(*) Professora da Escola de Engenharia de Lorena (EEL) da USP
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