A flor das cobras e o passeio da carruagem de fogo após a lua
Eu queria escrever uma crônica (quem sabe um conto) sobre pessoas solitárias sobrevivendo às multidões.
Ou sobre uma moça com nome de flor, ingênua, bela, do sorriso meigo, mas que desconhece a própria dor, ignora o poder dos seus espinhos.
A flor das cobras, vive nelas.
Escreveria com prazer algo bom sobre a teimosia, ou um texto terrível lamentando as minhas desistências (foram muitas).
Num repente atrevido, pousaria os olhos sobre a cascata de lágrimas derramadas enquanto ouvia os Beatles na adolescência (tempo ruim) e daquela extinta e profunda tristeza, arrancaria a rima da canção que nunca fiz.
Eu queria escrever algo impactante, o som retumbante da carruagem de fogo ganhando asas, subindo ao céu, envolta no barulho das rodas girando sem apoio, até alcançar as nuvens e nelas formando raios mortais. Queria escrever sobre a surpresa nos meus olhos cá abaixo imaginando, após a lua, até onde prosseguirá a carruagem? Se perderá na escuridão do universo? No céu só existe escuridão.
A carruagem atiçam os meus dedos no teclado, me convida a um passeio, e eu respondo: quem sabe num outro momento, agora tenho na mente a frase apanhada na internet – a flor das cobras – que me despertou, me fez escutar novamente o badalar dos sinos no início da canção do John Lennon. Por quem os sinos dobram? Por mim, Ernest, por mim. Aquela música do Lennon era o abraço do amigo invisível, causava uma instantânea tristeza, mas logo se transformava em euforia, porque Lennon gritava e eu, mesmo quieto, por dentro, gritava também: mama don't go, daddy come home!
A flor das cobras era a única a ouvir o meu lamento. Depois cruzava o quintal em zigue-zague, as pétalas se arrastando, até se perder nos cantos da mata.
A máscara sufoca o meu respirar, embaça os óculos, o pátio do condomínio é um desfile de mascarados. Vistos de longe, são todos crianças. Somos todos crianças: quando finalmente crescemos? Já passei dos cinquenta e não sei ainda, se sei, desconheço as letras e os caminhos. Um balançar de cabeça, a busca da realidade que sempre me escapa. Acontece muitas vezes, me confundo entre o mundo real e o imaginário, consigo correr, os cabelos de antes retornam, desarrumados pelo vento forte, cenas repetidas na retina embaçada, como da vez que subi até o topo de uma árvore, me arrastando entre os troncos, ignorando os perigos do balançar dos galhos, até encontrar um ninho de passarinhos vazio, mas ao descer, o rosto triunfante, disse a todos que os ovos eram azuis.
- Ovos não dão em árvore, você subiu para apanhar uma manga!
A voz do menino mais velho, um infante autoritário do qual eu sentia medo. Como explicar a sujeito tão chulo a beleza da existência dos ninhos dos passarinhos?
- Volte lá e pegue a manga! – Apontou os dedos na minha testa e saí correndo, sem lhe dar chances para me alcançar. Ah, eu corria como um lobo cinzento naqueles tempos, e era amigo das pedras, sabia me esconder entre elas e de lá ficar espreitando tudo em volta. O menino mais velho cuspiu palavrões, ao lado dele os outros meninos o encaravam, surpresos, exigindo atitudes do líder. Então ele mesmo subiu na árvore, apanhou diversas mangas, mas ao descer escorregou em algo e quebrou a perna. Nunca mais o vi, mas ainda escuto o barulho do tombo e o seu grito desesperado.
A flor das cobras reside entre os galhos das árvores.
Eu não queria mais escrever sobre o passado, mas guardo na memória o ladrar dos cachorros, aqueles que comiam junto da gente os restos, as sobras, o miolo do pão molhado no leite, os ossos, a carne envenenada da flor das cobras.
O baile dos mascarados prossegue pelas ruas da cidade. Até quando? O vírus é a flor das cobras e se eu tivesse poder, aqueceria o sol até derreter as rodas da carruagem de fogo, e ela cairia em milhões de pedaços incandescentes, até aniquilar o veneno para sempre.
E se penso, já acontece na minha mente, dentro de mim, vão nascendo imagens concretas, ouço o barulho do fim do tormento se confundindo com as rodas da carruagem de fogo crepitando os vazios do universo, aqui embaixo as máscaras caindo dos rostos, a explosão de gente sorrindo, finalmente sem medo.
E no meio da gritaria, o meu eu no silêncio, morto o menino, nascido o homem maduro, observando pela réstia da porta o que sobrou, envolto pela dúvida soberba de sempre: ficar quando todos se vão, ou ir quando todos ficam.