A revolta dos remédios - Crônica de André Alvez
Na cozinha aqui de casa, mais precisamente na prateleira, existe uma caixa de madeira na qual guardamos remédios.
Naquela noite de tempestade (uma leve dor de cabeça), a luz acabou de repente, com um pires de vela acesa nas mãos, me aproximei da prateleira.
A tempestade apagou os meus sentidos e num estalo me vi perdido entre meus remédios.
Estavam reunidos numa espécie de assembleia.
Tapei um dos ouvidos com a mão e aproximei o outro bem perto deles: Corus era o mais exaltado: “Sou eu que controlo a pressão arterial, portanto, mereço o posto de rei da prateleira”.
Ao lado dele, Cibofibrato balançava a cabeça em forma de apoio, já pensando no cargo de primeiro ministro.
Rompendo entre eles, Metformina se ergueu colérica: “eu controlo o diabetes, sem mim, de nada adianta controlar a pressão”.
Concordei feito um assessor bajulador, ciente da importância da Metformina, sem a qual, meu sangue adoça.
Como os ânimos permaneceram exaltados, naquela de conciliadora, Paracetamol se colocou à disposição para assumir o cargo, caso não houvesse consenso.
Fosfato de Sitagliptina ameaçou usar a força, “É na luta que impérios se constroem!”, bradou, conseguindo calar a turba por instantes.
Sonrizal rompeu o silêncio, a voz repleta de xis, ameaçando se atirar num copo d’água se não fosse atendido: “e nem quero ser rei, apenas que parem de tirar o sarro no meu jeito de falar”.
Valda, a pastilha, sorriu, cínica.
Alopurinol, Leite de Magnésio e um Xarope maltrapilho se uniram, já lançando o lema “unidos venceremos!”.
Tentei despertar beliscando meu braço, mas Mertiolate me olhou de um tão jeito estranho que acabei recuando, não sem antes prometer em pensamentos: assim que acordar, buscarei tratamento médico.
Foi só pensar nisso que um grupo de vitaminas olhou para mim com cumplicidade.
A passos vagarosos, dois laxantes se juntaram à turba, pouco se incomodando com o Xarope maltrapilho que gritou: “Vocês vão ver o que é bom para tosse!”.
Um tanto perdido, Vick Vaporube se mostrava chateado por não ter nada para desentupir e ao passar perto de mim, cumprimentou o meu nariz, seu velho conhecido.
“Cegos!” gritou o colírio, batendo no peito, na arrogância própria dos lubrificantes: “não percebem que para ser rei é necessário primeiro enxergar?”
Preparei-me para concordar quando ouvi atrás de mim uma voz metálica: “Cale-se, você está com a validade vencida!” alertou o antialérgico.
Largada num canto, Dipirona mantinha o olhar perdido, indiferente à revolta, perdida na dor da saudade de um amor do passado, uma sirigaita chamada Cibalena, que partiu sem se despedir.
Estirados num canto, Rivotril e Zolpidem dormiam abraçados.
Todos se calaram quando o pote de Emulsão de Scott se aproximou arrastando o seu lume de gorduras.
Ninguém se atreveu falar, completamente lesos, razão do respeito e admiração por um remédio que desde que chegou à prateleira, jamais fora usado.
E a luz voltou me trazendo à realidade, tonto, cansado, a ressaca ainda por perto, sem saber ao certo qual remédio deveria tomar.
André Alvez