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Beba das Crônicas

A revolta dos remédios - Crônica de André Alvez

André Alvez (*) | 28/11/2021 10:00

Na cozinha aqui de casa, mais precisamente na prateleira, existe uma caixa de madeira na qual guardamos remédios.

Naquela noite de tempestade (uma leve dor de cabeça), a luz acabou de repente, com um pires de vela acesa nas mãos, me aproximei da prateleira.

A tempestade apagou os meus sentidos e num estalo me vi perdido entre meus remédios.

Estavam reunidos numa espécie de assembleia.

Tapei um dos ouvidos com a mão e aproximei o outro bem perto deles: Corus era o mais exaltado: “Sou eu que controlo a pressão arterial, portanto, mereço o posto de rei da prateleira”.

Ao lado dele, Cibofibrato balançava a cabeça em forma de apoio, já pensando no cargo de primeiro ministro.

Rompendo entre eles, Metformina se ergueu colérica: “eu controlo o diabetes, sem mim, de nada adianta controlar a pressão”.

Concordei feito um assessor bajulador, ciente da importância da Metformina, sem a qual, meu sangue adoça.

Como os ânimos permaneceram exaltados, naquela de conciliadora, Paracetamol se colocou à disposição para assumir o cargo, caso não houvesse consenso.

Fosfato de Sitagliptina ameaçou usar a força, “É na luta que impérios se constroem!”, bradou, conseguindo calar a turba por instantes.

Sonrizal rompeu o silêncio, a voz repleta de xis, ameaçando se atirar num copo d’água se não fosse atendido: “e nem quero ser rei, apenas que parem de tirar o sarro no meu jeito de falar”.

Valda, a pastilha, sorriu, cínica.

Alopurinol, Leite de Magnésio e um Xarope maltrapilho se uniram, já lançando o lema “unidos venceremos!”.

Tentei despertar beliscando meu braço, mas Mertiolate me olhou de um tão jeito estranho que acabei recuando, não sem antes prometer em pensamentos: assim que acordar, buscarei tratamento médico.

Foi só pensar nisso que um grupo de vitaminas olhou para mim com cumplicidade.

A passos vagarosos, dois laxantes se juntaram à turba, pouco se incomodando com o Xarope maltrapilho que gritou: “Vocês vão ver o que é bom para tosse!”.

Um tanto perdido, Vick Vaporube se mostrava chateado por não ter nada para desentupir e ao passar perto de mim, cumprimentou o meu nariz, seu velho conhecido.

“Cegos!” gritou o colírio, batendo no peito, na arrogância própria dos lubrificantes: “não percebem que para ser rei é necessário primeiro enxergar?”

Preparei-me para concordar quando ouvi atrás de mim uma voz metálica: “Cale-se, você está com a validade vencida!” alertou o antialérgico.

Largada num canto, Dipirona mantinha o olhar perdido, indiferente à revolta, perdida na dor da saudade de um amor do passado, uma sirigaita chamada Cibalena, que partiu sem se despedir.

Estirados num canto, Rivotril e Zolpidem dormiam abraçados.

Todos se calaram quando o pote de Emulsão de Scott se aproximou arrastando o seu lume de gorduras.

Ninguém se atreveu falar, completamente lesos, razão do respeito e admiração por um remédio que desde que chegou à prateleira, jamais fora usado.

E a luz voltou me trazendo à realidade, tonto, cansado, a ressaca ainda por perto, sem saber ao certo qual remédio deveria tomar.

André Alvez

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