Sou Vladimir de La Mancha, e só tenho medo de dentista!
Sobre a penteadeira, uma folha de papel em branco encara a caneta brilhosa girando entre os meus dedos.
No espelho da penteadeira, o reflexo ganha frisos delicados, mostra o retrato do meu rosto, aos poucos se alterando.
Como numa metamorfose, sou outra pessoa.
Então, escrevo...
A solidão desperta os meus demônios, faz surgir versos inextricáveis: tenho sede e não encontro o pote de água, sinto fome, mas o meu paladar se perdeu em algum canto, disfarçado de melancolia, vestido de ansiedade.
Onde foi que deixei morrer a rosa de plástico que diziam nunca ter fim?
Qual o nome daquela esquina na qual nos separamos, a felicidade e eu, mudos, um para cada lado, sem sequer dizer adeus?
Até quando, meu Deus, para sempre será assim?
O suspiro, uma espécie de quentura me abraça, sinto o prazer de Michelangelo diante da estátua de Moisés, a caneta se transforma num martelo e bato com ele no papel: por que não falas? Recebo como resposta o calafrio do extremo silêncio, navegando sôfrego num barco em busca da margem que nunca chega, ouvindo o bramido do rio que vem lá de fora, como se fosse um chamado fascinante.
Leio o que escrevi e a folha de papel se mexe, inconformada com tamanha ousadia. Num revés, a minha imagem no espelho sorri, quase gargalha:
- É você, tentando ser poeta, machista?
A caneta escorrega no suor dos meus dedos, e já não me sai mais nada.
A brusca realidade desfaz os traços delicados do meu rosto, modificado aos poucos, entumecido de veias latejantes, o inverso da metamorfose, morre o poeta, renasce o eu verdadeiro, sou novamente Vladimir de La Mancha e meu único medo é a cadeira do dentista.
Uma dor estranha ganha forma no meu peito. É solidão que chama? Então é isso que sou nesse momento, solidão, febre, sofreguidão.
Num supetão, saio do quarto, deixo o vento levar pela janela a folha do poema que escrevi, sem me importar que alguém a encontre, como se fosse uma garrafa emergindo do mar até aportar na praia, a pegue pelas mãos, leia e sinta a mesma dor da solidão que me fez escrever versos tão melancólicos.
Preciso urgentemente ver gente, ouvir vozes, cantos, berros, gritos.
Na sala, uma lata de cerveja já quente em cima da mesinha, fazendo par com o sofá e tudo o mais é silêncio.
Meia noite já se foi e o sono não chega.
Nós, os solteiros, somos os mais atingido por essa crueldade do distanciamento social. Um amigo me falou sobre uma coisa chamada Tinder, mas não consigo dominar esses avanços tecnológicos. Bons tempos aqueles que não existia Internet, nem celular, a gente pegava o número do telefone da garota, ligava de madrugada para uma boa conversa e depois, dependendo da conversa, rolava sexo pelo telefone.
Sexo pelo telefone...que coisa mais tosca! Já fiz muito, mas não vou fazer novamente agora aos cinquenta anos. Ou vou?
Eu tenho um telefone fixo e no fundo da gaveta do armário em desuso, no canto do quarto nunca ocupado, existe, eu sei, uma agenda guardada feito relíquia desde os anos oitenta, empoeirada, amarelada pelo tempo. Quem ainda usa telefone fixo nos dias de hoje? Será que ainda existe vida do outro lado da linha?
Um gole na cerveja quente e os dedos ligeiros de antes revigorados.
Liguei para vários números e só homens atenderam, cobertos de razão e cólera, a desandar a honra da minha mãe, inconformados pela chamada telefônica de um desconhecido em plena madrugada.
Ninguém era mais alguém de antes.
Por fim, quando já estava quase desistindo, ouvi uma voz suave de mulher no outro lado da linha:
- Alô, pois não?
- Oi, tudo bem? O meu nome é Vladimir de La Mancha e só tenho medo de dentista.
- Oi? Não entendi.
- Eu estava me apresentando. Achei seu telefone numa agenda antiga e tentei a sorte. Na minha agenda seu número está marcado como Ana Clara, é você?
- Não, eu sou a Marli e esse telefone já existia quando aluguei o apartamento.
Ah, um nome antigo, atendendo num telefone fixo, deve ter mais de quarenta e cinco. Fico empolgado.
- Então Marli, vou logo ao ponto, estou sozinho no meu apartamento, sabe como é, solidão danada nessa pandemia maldita.
- Ah sei, mas porque você não liga para um amigo?
Eu ia dizer que meu único amigo é um escritor e ele é chato às vezes, principalmente quando está dormindo e provavelmente ele está dormindo agora, às duas da madrugada. Sou mestre em inventar respostas esfarrapadas:
- Porque o celular descarregou e não encontro o carregador.
- Que pena. Mas você não tem computador?
Precisava urgente de uma resposta e principalmente não gaguejar. Resolvi ser direto.
- É que estou precisando de algo mais forte que amizade.
- Entendi... Mas... Eu não sou dessas que namoram por telefone.
- Não, claro que não, eu só quero conversar com alguém...
- Mas para falar sobre o quê com uma desconhecida?
- Sobre a vida, sobre tudo, essa solidão, sabe?
- Você é solitário?
- Sou
- Eu também sou. Já fui casada, mas hoje estou solteira, graças ao bom Deus.
- Não tem nem namorado?
- Convites é que não faltam, mas eu sou exigente, sabe? Só porque eu tenho renda, vivo da herança do meu pai, não preciso trabalhar e só me formei advogada porque fui obrigada a estudar, não quer dizer que sou uma pessoa supérflua e cheia de quereres.
- Ei, quanta coincidência! Marli, você é exatamente como eu, olha que incrível!
- Eu já ia dormir, estava ouvindo Caetano, você gosta dele?
- Do Caetano? Nossa, sou muito fã.
Mentira descarada, nunca gostei daquele fresco, não troco Leandro e Leonardo por ele de jeito nenhum.
Ela então aumentou o som do disco de vinil, dava para ouvir perfeitamente do outro lado da linha, até enxerguei na mente o Caetano segurando o microfone com os dedinhos da mão e dando passinho rebolantes para os lados.
Marli cantou junto, na mesma voz tremida do Caetano.
- O quereres é estares sempre afim – cantarolou – agora é você!
- Eu?
- Sim. Canta junto comigo.
Marli danou a falar as frases da música e eu tinha que responder de imediato, para não perder a paquera. E o pior, eu sabia responder, nessa o meu amigo escritor me salvou, na juventude, ele praticamente me obrigava a ouvir o Caetano. “Onde queres revólver, sou coqueiro”, olha que coisa mais escrota!
- Ah, bruta flor do querer, ah, bruta flor, bruta flor.
Ouvi o suspiro da Marli do outro lado da linha enquanto as rodelas de suor já tomavam conta da minha camisa. Maldito Caetano!
- A gente podia mudar para um roquezinho? Sugeri.
- Você curte rock?
- Sim, eu tive uma banda quando era jovem.
- Ah é? Como era o nome da banda?
- A Junta do Cabeçote – respondi, empolgado.
- Que nome diferente! Amei. O que significa?
Eu não podia falar a verdade, a Junta significava cinco caras juntos, e Cabeçote, bem, era a segunda cabeça, aquela que não pensa.
Mentir para as mulheres, eis novamente o meu maior talento:
- O nome da banda tem a ver com o alto astral, com o Cosmo, aquela coisa Uri Geller de entortar colheres com a força do pensamento, sabe?
- Nossa, genial! E não deu certo?
- Não, a gente brigava muito, sabe como é, roqueiros nunca se entendem.
Na verdade, nenhum de nós sabia tocar ou cantar. Eu queria mesmo era impressionar uma tal Renata, irmã de um conhecido, morena dos olhos de bolita e que dificilmente olhava para a minha cara.
- Tá, o que você quer ouvir?
- Escolhe uma banda aí.
- Pode ser nacional?
Ai, ai, ai, só falta ela colocar a Legião Urbana, odeio aquele cantor fanho.
- Pode, claro. Que tal o Kid Abelha?
- Ah, danadinho, você quer apimentar a conversa, né?
E não disse mais nada, ouvi a agulha da vitrola arranhar levemente o disco de vinil, certamente suas mãos começaram a tremer. Cantamos juntos duas músicas, ela de Paula Toller, eu fazendo a segunda voz, como se fosse a Roberta Miranda. Tomei de um só gole o resto da cerveja quente e aguardei a terceira música, tinha que ser...e era...Pintura íntima. Mantivemos a compostura até a parte fatal:
- Fazer amor de madrugada...
Ela suspirou, eu congelei:
- Que roupa você está usando? A voz, um tanto trêmula, me pegou de surpresa.
Eu estava usando uma camisa polo encharcada de rodelas de suor, uma bermuda bege até os joelhos e cueca samba canção.
Meu talento, mentir para uma mulher, eis me aqui novamente:
- Estou sem camisa e de sunga vermelha...
- O que você quer fazer comigo?
- O que você me permitir fazer.
E então os quereres se mostraram sem máculas.
Falamos um para o outro palavras obscenas, coisa que só se diz entre quatro paredes, urros, gemidos ao telefone, ela me chamou de gostoso, eu disse que ela era uma delícia, coisas assim, mais e mais, até a explosão se encontrar na linha do telefone, nos causando uma espécie de paz suprema.
Desligamos, fartos, satisfeitos, um gosto de aventura do passado na boca, prometendo nos falar novamente noutro dia.
Assoprei a poeira da velha agenda e novamente a guardei no fundo da gaveta do quarto nunca usado. Tomara que ela não tenha bina no telefone.
E me transformei no corvo do poema de Edgar Alan Poe, crocitando em pensamento: nunca mais!
Fiz o corpo desabar na cama, liguei o ar condicionado e me cobri de corpo inteiro, apenas uma fresta escapando pela ponta da coberta, mostrando a claridade do dia nascendo lá fora, outro dia de isolamento, feito o estrondo de uma pedra enorme caindo no fundo do abismo.