Uma esquina eterna chamada Adeon
Eu não sei ao certo qual a diferença entre nostalgia e melancolia. Entendo, porém, a melancolia como algo triste, enquanto a nostalgia é um sentimento gostoso e tem a ver com as lembranças de um tempo bom que nunca mais haverá de voltar.
Assim, a nostalgia toma conta de mim nesse exato instante em que escrevo...
Ele tinha o riso largo, o jeito faceiro de demonstrar amizade e carinho. O abraço um tanto desajeitado era o máximo que ele conseguia fazer, porque a paralisia em uma das mãos limitava seus movimentos.
Quando nos vimos pela primeira vez, o vento soprou uma certeza: seríamos amigos para sempre.
Adeon Machado do Couto, eis o nome completo do meu querido amigo de infância que agora mora no céu.
Eu não sabia que ele estava doente. Nessas correrias da vida, onde tudo é pressa, no ano que corre, acabei adiando cada vez mais a visita à banca de revista que frequento desde o ano de 1978.
Nos falamos pela última vez em dezembro. Ele estava empolgado por haver ganho uma disputa ferrenha com o dono do prédio em frente à banca de revista - um edifício alugado para um órgão federal - garboso e repleto de vidros, em contraste com a velha banca de jornal, retorcida e mal pintada, mas repleta de histórias.
Antes de mais nada preciso dizer que o Adeon era um vencedor. Negro, nascido nos confins de Minas Gerais, já de cara sofreu paralisia na mão direita, mas nunca se sentiu incapaz.
“Podia ser pior, se fosse uma das pernas, ou os olhos... Eu enxergo, ando, corro”, dizia ele sempre que o assunto surgia.
Chegou a Campo Grande em meados dos anos setenta. Trabalhou de engraxate, vendedor de picolé, guia de cegos. Um dia teve a ideia de comprar uma banca de revistas. Juntou dinheiro até conseguir o valor necessário e assim montou essa mesma banca que ainda hoje está teimosamente erguida na esquina da Rua Marechal Rondon com Avenida Calógeras. Depois expandiu o negócio, chegou a ser dono de várias bancas de revistas espalhadas pela cidade. Como não tinha dinheiro para comprar revistas novas, optou pelas usadas, sendo o primeiro dono de banca de revista estilo sebo em Campo Grande, no sistema de troca, duas por uma, cinco por duas e assim montou um império no ramo de sebo, se tornando referência em revistas usadas. Mais tarde, acabou vendendo as outras bancas, ficando apenas com a matriz, como ele chamava a primeira banca, a eterna de tantas histórias.
Foi lá que nos conhecemos. Sou desde sempre um leitor voraz e a banca do Adeon era como se fosse minha segunda casa. Nessa época eu trabalhava na rua paralela, a Maracajú, de aprendiz de ourives, na oficina do mestre Gilberto Billerbeck. Meu tempo livre, passava na banda do Adeon.
No começo eu disfarçava, lia as capas, falava alguma coisa engraçada, o Adeon ria e, quando se dava em conta, eu já estava lendo a revista toda. Ele dava bronca, “tem que comprar, não pode ler de graça, não estraga o meu negócio, mister!”. Ele chamava todo mundo de mister. Eu só conseguia comprar no final de semana, quando recebia parte do meu salário. O problema é que eu precisava ler todos os dias. No fim de semana comprava duas revistas ou mais e ele ficava contente, esquecia completamente a minha audácia durante a semana, mesmo sabendo que aquilo se tornaria um costume. A amizade aumentou por conta de uma garota chamada Cleonice, a Cléo. Nós dois nos apaixonamos por ela. Cléo era alta, linda, meiga, sabia a causa do brilho escapando de nossos olhos sempre quando ela surgia diante de nós. “Garotos não resistem aos seus mistérios, garotos nunca dizem não, garotos como eu sempre tão espertos, perto de uma mulher, são só garotos” diz a canção do Leoni. Verdade absoluta. Com a Cléo, não tínhamos chances, por isso nem teve briga, apenas a conformidade em forma de risos e sonhos. Outras meninas surgiram na banca do Adeon e nos apaixonamos por quase todas, sem sucesso.
Só garotos e tantas histórias...
Certa vez o Adeon apareceu com um carro que havia comprado, um Opala preto.
- Entra aí, vamos dar uma volta.
Detalhe: ele não sabia dirigir. Ainda assim lá fomos nós, até a casa dele nas Moreninhas. O tempo todo passei um medo danado, ele não olhava para frente, ria por qualquer bobagem tentando disfarçar o nervosismo, cambiava a marcha errada fazendo o motor rugir.
O carro tinha pouco freio, nenhuma seta, mas era confortável e fui inventar de dizer para ele que parecia o quarto de uma casa. No outro dia ele me encarou com a pergunta:
- O que você diria se eu colocasse umas cortinas nas janelas do Opalão?
Caí na risada, falei que era o cúmulo da breguice, quase implorei que não fizesse aquilo com um carro tão bonito. Na hora ele concordou com leves acenos de cabeça, mas na outra semana já apareceu com o Opala repleto de cortinas nas janelas:
- Mas Adeon, eu te falei...
- Não importa o que você falou. O carro é meu, faço o que quiser.
Eu ri, acostumado com o jeito do meu amigo. No final, ele me olhou sério e perguntou:
- Será que existe alguma geladeira que caiba lá dentro?
Meses depois, o encontrei aborrecido: roubaram o Opala. Nunca mais o encontrou. Resolveu juntar dinheiro para comprar outro carro. E enquanto o montante de dinheiro não se completava, decidiu tirar carteira de habilitação. Aquilo foi tão inspirador que também aventurei me habilitar. Naqueles tempos não existiam as autoescolas e quem nos ensinava a dirigir eram os pais. No nosso caso, ambos sem pai, apelamos para a gentileza e dedicação do nosso melhor amigo, o José Patay Neto, tão bom motorista de carros que hoje em dia é piloto de avião. Mais por sorte do que por competência eu consegui passar já na primeira prova. O Adeon reprovou exatas noves vezes, sem nunca nem pensar em desistir. Ele tinha o problema da paralisia na mão e isso dificultou muito o seu sucesso, até o dia em que, todo orgulhoso, nos mostrou a tão sonhada carteira de habilitação envolta num convite irresistível:
- Vamos beber para comemorar!
Uma coisa chama a outra e, de repente, o bar em frente à banca do Adeon montou mesas de sinuca e nós ficamos enlouquecidos.
As disputas valiam o pagamento das despesas numa melhor de cinco. No começo desajeitado do meu amigo, eu sempre ganhava e nem me preocupava em levar dinheiro.
Mas o Adeon era um obstinado. Aprendeu a jogar, aperfeiçoou algumas das minhas jogadas, se tornou um estrategista e eu não percebi.
E aconteceu um dia dele ganhar de quatro a um. Inconformado e sem dinheiro, desafiei: - Vamos disputar uma melhor de sete.
Ele riu, jogou o taco na mesa, bebeu num gole só o resto da caipirinha e me encarou:
- Vamos embora. Eu sei que você não tem dinheiro, pode deixar, eu vou pagar. Mas não se esqueça, eu venci e você está me devendo.
E seguiu rumo ao caixa, com seu andar torto, aquela risada contagiante, feliz da vida pela primeira vitória (viriam outras), deixando comigo a lição para nunca mais esquecer: nunca menospreze o adversário, não apenas num simples jogo de sinuca, mas em tudo na vida.
Eu já disse que o Adeon era mineiro? Pois bem, nosso amigo Patay encontrou num velho baú em sua casa uma pulseira de prata. O Adeon quis comprar. Acompanhei a disputa com interesse, sabia o desejo do Adeon de ter uma corrente de prata enorme com uma plaquinha escrita Jesus, que ele era muito religioso e eu teria a chance de confeccionar a tal corrente e, assim, por em prova a minha capacidade de criação no ramo de joalheiro. E então vi de perto a maior disputa de compra e venda de toda minha vida, a luta insana entre um descendente de judeu e um mineiro. Patay colocou o preço lá em cima, o Adeon queria pagar muito abaixo. Foram negociando o preço, Patay tirava um pouquinho, Adeon aumentava milímetros. Foram horas até que se dessem por satisfeitos num aperto de mão.
Patay, mesmo hoje morando em São Paulo, quando em visita à nossa cidade, nunca deixou de visitar o amigo Adeon na banca de revistas.
Foi ele que me passou a triste notícia do falecimento.
Ah, meu amigo, tão triste essa coisa de partir sem dizer adeus...
Tá bom, não deu tempo, mas o tempo é um bichinho voador e ele sempre paira sobre nossas cabeças na forma de recordação, como daquela vez, no trem do Pantanal rumo à estação Cachoeirão. Por lá existia uma piscina natural muito frequentada pela rapaziada de Campo Grande. O Adeon se ajeitou no restaurante do trem e pediu uma cerveja. Nós, Patay, Paulo e eu, ficamos cuidando dele, porque, conhecíamos pelas experiências anteriores, nosso bom amigo Adeon não sabia beber, ficava bêbado logo e não parava de rir, falando sem se fazer compreender, as palavras expelidas pelo álcool. E não teve jeito, quando o locutor do trem anunciou a chegada da estação Cachoeirão, Adeon se desprendeu de nós e pulou para fora com o trem ainda em movimento. Se ralou todo mas não ligou, estava feliz, queria beber mais e mergulhar na piscina. Outro problema: nosso amigo não sabia nadar. Avisamos várias vezes para ficar no raso mas, num descuido, ele subiu num dos pilares e deu um mergulho de cabeça, estilo olímpico e desapareceu nas águas da enorme piscina. Bateu o desespero, mergulhamos atrás e nada do Adeon. De repente ele surgiu montado nas costas de um desconhecido, sujeito forte, bom nadador, que o apanhou sentado no fundo da piscina e o recolheu para cima. Parecia morto, mas foi só um susto. Logo vomitou água com cheiro de cachaça e repentinamente se curou da bebedeira. Naquela mesmo final de dia, antes mesmo de montar a barraca de camping (“na volta dou um jeito nisso”), se embrenhou na mata armado de uma garrucha afirmando que desde Minas Gerais era caçador e estava com fome, nem tanta fome, mas saudades de comer bicho do mato caçado. Tentamos impedir, mas ele tinha a garrucha e ficou enfezado: “eu sei me cuidar, sou da mata de Teófilo Otoni”. Eu ia avisar que onça é bicho esperto e desconhece Minas Gerais, mas ele estava mesmo decidido. Pensamos por fim que logo voltaria, a noite era de lua cheia, difícil perdermos de vista aquele seu cabelo black power. Mas não deu nem dez minutos para que ele desaparecesse por completo, envolto em um enorme silêncio. De lanternas nas mãos, perto da meia noite, saímos à caça do nosso Adeon. Gritamos, berramos seu nome e nada dele responder. Exaustos, fomos dormir, na esperança que ele aparecesse junto dos primeiros raios da manhã, mas nada disso aconteceu. Perto do meio-dia alguém finalmente gritou: “achei ele!” Corremos até o local indicado e lá estava o Adeon, dormindo agarrado no tronco de uma árvore, a garrucha ainda presa aos dedos, sem disparar um mísero tiro. Quando acordou, contou que viu assombração e nenhum bicho, mas gostou do fato de ter sobrevivido, descendo da árvore agarrado às costas do mesmo sujeito enorme que o salvou na piscina. Visto de perto, aquele homem tinha algo de assombroso no jeito de ser, o olhar bastante profundo e misterioso em todo o resto, inclusive na voz que ressoava como se fosse uma sentença:
- Amigo, vê se não se mete em outra encrenca, não vou estar sempre por perto.
Adeon riu sem se esquecer de agradecer:
- Sabe que quando vi a assombração pensei que era você?
O sujeito sorriu e logo lhe respondeu:
- Você precisa parar de beber. Não existe assombração, só existem Deus e os anjos da guarda.
O trem do Pantanal esmagava os trilhos no sentido Campo Grande no final do outro dia. Diversas vezes ele pediu para voltarmos ao Cachoeirão e fomos deixando para depois, ressabiados dos acontecimentos daquela primeira vez.
E a cidade foi crescendo, engolindo tudo em volta, mudanças profundas, como o bar das mesas de sinuca transformado no prédio de vidro e restou naquela esquina, de tudo de antes, apenas a velha banca do Adeon.
O passar do tempo não nos separou totalmente, sempre cuidava de ir visitá-lo na banca quando estava pela cidade, e assim acompanhei seu progresso como ser humano especial que sempre foi: um sujeito trabalhador e dedicado, de um tanto que conseguiu se formar em Direito, embora não tivesse disposição para exercer a profissão. Tornou-se advogado e adorava quando eu o chamava de doutor Adeon.
É engraçado como a gente pouco percebe as mudanças provocadas pelo passar do tempo. De repente, Adeon estava grisalho e seu sorriso já era um tanto contido. Sua mão, afetada pela paralisia, quase não se mexia e ele às vezes se calava por instantes, buscando na mente alguma de nossas histórias.
O fim foi rápido. Adeon, meu querido amigo de infância, adoeceu e morreu em pouco tempo.
Só fiquei sabendo de sua partida uma semana depois e a minha ausência na última despedida é o que me causa a dor maior.
Resta uma pontada de saudade no peito sempre que passo naquela esquina. A velha banca ainda está lá, mas não como era antes. É a mesma de quase sempre, mas agora está adesivada e cheia de cores.
Entretanto, ainda consigo enxergá-la tal e qual em 1978. Dentro dela está o meu amigo, sentado atrás do balcão, me esperando com aquele sorriso largo no rosto.
Aquela banca de revista será sempre um registro da história de nossa cidade. Lá o coração do Adeon ainda pulsa e consigo escutá-lo, percebo a mesma risada, vejo o rosto amigo de sempre, agora mergulhando entre as nuvens do céu, o mesmo céu que um dia ele viu amanhecer em cima de uma imensa árvore após ter ficado diante de uma visão de assombração na mata do Cachoeirão. Terá sido assombração?
Passo pela esquina quase sempre e ecoa nos meus ouvidos uma de nossas conversas:
- Assombração não existe, Adeon.
- Existe sim e eu vi.
- Como era?
- Era um ser enorme, cabelos longos, tinha asa branca e os olhos castanhos.
E dessa narrativa, tirando a asa branca, surge a imagem do sujeito enorme que o retirou do fundo da piscina e depois o desceu de cima da árvore. Nunca mais soubemos dele. Será?...
O semblante pensativo do Adeon sempre que falava sobre esse assunto retorna à minha frente e sentencio:
- Então não era assombração, era seu anjo da guarda.
- Será? Não sei. Senti medo, mas logo passou. Acho que você tem razão, era meu anjo da guarda...
Tenho razão sim, meu amigo, agora mesmo consigo enxergar você aí no céu, protegido para sempre pelo seu anjo da guarda e olhando para nós e, devo confessar, sempre sinto uma pontada de saudade no peito ao cruzar a esquina da Avenida Calógeras com a Marechal Rondon, um lugar de ventos, chuvas, histórias e sons, a esquina eterna, para sempre chamada Adeon.
André Alvez