Após 4 feminicídios em 2020, juíza acredita: "podemos salvar outras"
Helena Alice coordena os trabalhos da Justiça no combate aos crimes de gênero
Aos 21 anos, a estudante Maria Graziele Elias da Silva esteve nas manchetes dos jornais locais neste mês de abril. Primeiro por estar desaparecida, depois como a identidade do corpo encontrado inerte no meio do mato, já em decomposição, e por último como mais uma vítima de feminicídio, o tipo criminal criado para punir assassinatos ligados à violência de gênero e, principalmente, assinalar que ela é diferenciada de outros crimes contra a vida, com a marca do machismo em cada vítima.
Em geral, são mulheres que morrem pelas mãos de homens com quem se relacionam, no epílogo de novelas da vida real repletas de agressões, verbais, psicológicas e físicas. “Gra”, como era conhecida entre os seus, foi mais uma das que não conseguiram romper a “escalada da violência”, termo usado pela juíza Helena Alice Machado Coelho, coordenadora da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul).
Pela experiência da magistrada, trata-se de ciclo que, em média, leva dez anos para ser rompido. Maria Graziele não teve esse tempo. Foi morta, com uma gravata, no oitavo ano de vai e vem com Lucas Pergentino Câmara, 26 anos, iniciado quando ela tinha 13 anos e ele 18.
É possível ! - Contra o desânimo que casos assim trazem, a juíza não desiste: para ela, muitas mulheres podem “ser salvas”. É imperativo, porém, acreditar na lei, nas instituições, e procurar ajuda, argumenta. A sociedade também pode livrar mulheres da violência, com mais informação, preocupação com o assunto e, principalmente, ação em busca da mudança de comportamento.
Em entrevista ao Campo Grande News, a juíza acostumada a lidar com o tema responde às afirmações muito comuns após feminícidios, em sua maioria questionando a opção feita pela mulher, muitas vezes atribuindo à vítima culpa por ser vítima.
Helena Alice também faz alerta importante para o momento de crise mundial, sobre o aumento da violência dentro de casa como reflexo da pandemia de novo coronavírus. Para ela, o grave período vivido no mundo todo acentua problemas que têm como resultado a ampliação da violência de gênero.
Só neste ano, em Campo Grande, já são quatro mulheres assassinadas com características de feminicídio. No ano passado inteiro haviam sido cinco. Saiba o que a pensa a magistrada na conversa a seguir:
Campo Grande News - A despeito de tanta informação a respeito, muitas mulheres não conseguirem se livrar de relacionamentos violentos e acabarem como vítimas. O que explica isso?
Helena Alice – “A questão de muitas mulheres não conseguirem se livrar do relacionamento abusivo está ligada ao ciclo da violência. O homem agressor não é 100% violento o tempo todo. Ele é um homem que agride, promete que vai melhorar e nunca melhora. Invariavelmente, a mulher tem dependência com o agressor. É alguém que ela gosta, isso leva a uma dependência emocional, financeira. A mulher pensa na família, nos filhos. É todo um contexto para que não rompa esse ciclo de violência. Estudos dizem que esse ciclo demora até dez anos para ser rompido. Ele constitui na fase de tensão onde a mulher faz tudo para agradar, não quer deixar o homem nervoso, ele faz uma pressão, muitas vezes verbal, psicológica, até a agressão física. Essa agressão é em escalada. Depois da tensão vem agressão de fato e depois da agressão de fato vem a lua de mel, as promessas de que ele vai mudar, melhorar, nunca mais fazer isso”.
Campo Grande News - Existe um perfil do agressor?
Helena Alice – “O autor é o homem médio, geralmente bem visto no meio social. Isso tudo pesa contra a mulher na hora dela tomar essa decisão. As pessoas dizem ‘nossa ele é tão bom, uma boa pessoa, um bom trabalhador, bom pai’ e perpetua violência contra ela. A gente tem que lembrar também do papel social as mulheres. A sociedade impõe que a mulher não se separe, fique casada. Que a mulher sustente esse relacionamento muitas as vezes custas da própria vida, no caso de feminicídio. Para quase prestar contas à sociedade. Que ela é casada e manteve a família dela. É um peso muito grande pra mulher”.
Campo Grande News - Os casos de violência doméstica estão aumentando durante a pandemia de coronavírus, inclusive com um episódio grave de feminicídio, cujo corpo da vítima foi abandonado à beira de uma rodovia. Qual é a análise da senhora sobre esse quadro?
Helena Alice: “Por quê a gente observa que duramente o isolamento social existe esse aumento? As pessoas ficam mais tempo em casa, mais tempo juntos. Com isso, a carga sobre as mulheres aumenta. Fica com a mulher cuidado de filhos, da casa, de idosos, caso existam. Muitas trabalham em home office e, aliado a isso, existe a iminência da perda do emprego, a tensão (alguns já perderam). Já foi verificado aumento no consumo de álcool, drogas ilícitas. E todos esses são fatores que aumentam com o isolamento social. A mulher não consegue sair, pedir ajuda. Não consegue chegar até o serviço das autoridades, por isso trabalhamos bastante nas mídias que a mulher denuncie mesmo na pandemia, que os serviços estão funcionando, que procurem o 180, o 190. Estamos batendo muito em cima dessa tecla para que as mulheres continuem procurando ajuda. A gente só consegue ajudar quem chega até a gente. A maioria das vítimas de feminicídio não tem medida protetiva. E elas são efetivas. Conseguimos na maioria dos casos proteger as mulheres seja com a tornozeleira, botão do pânico, seja com a prisão do agressor. É importante que as mulheres acreditem, busquem a Delegacia da Mulher, a Casa da Mulher ou qualquer delegacia, e peçam as medidas protetivas. A gente consegue salvar elas”.
Serviço: O assunto preocupa tanto que nesta quinta-feira (30) será realizada transmissão ao vivo, pelo TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul) com o tema feminicídio. A iniciativa poderá ser acompanhada no perfil do Instagram do Tribunal de Justiça.