Curados da covid não veem a hora de sentir cheiro de pão, bolo e casa limpa
Uma das sequelas da covid é a redução parcial ou total de sentir cheiros e sabores

"Não dá vontade de comer, é terrível, você come porque seu estômago está falando que você tem fome, mas você não sente vontade de comer nada", descreve a professora Júlia Assunção Gregório Moraes. Aos 53 anos, ela se recupera da covid-19, depois do resultado positivo há pouco mais de um mês, dia 3 de novembro.
Sem sintomas mais agravantes como falta de ar, Júlia teve diarreia leve e perdeu o olfato e o paladar logo nos primeiros dias, mas não teve tosse nem febre. "Depois de uma semana eu tive uma depressão muito grande, tive que entrar com remédio e falo para você, não estou 100% não", comenta.
Cozinheira em casa, o mais difícil tem sido saber se a receita que está no fogo já começou a cheirar. "Se eu coloco alguma coisa pra cozinhar, tenho que estar muito atenta, se não eu queimo. É muito interessante como o olfato tem uma importância tão grande. Você só sabe mensurar isso quando perde", lamenta.
O sabor também não é sentido e desde então, para se alimentar, Júlia busca na memória recordar como era o gosto do que está no prato.
"Eu não sinto o sabor, eu tenho a consistência, a lembrança daquilo que era, mas na hora eu não sinto o sabor. É muito estranho, você conhece aquele sabor, mas não reconhece", traduz.
Curada da covid, ela faz questão de frisar que a sequela é leve diante dos números de óbitos e casos mais graves, mas não esconde a saudade que sente dos cheiros que agora só lhe visitam nas recordações. É algo simples, mas que mostra como a pandemia nos tirou até as sutilezas.
"Dá para sentir saudade do perfume que eu gosto, do xampu que eu uso, o cheiro de casa limpa. De flor, nossa, o cheiro de flor, eu não sinto e tenho saudades disso..." Em casa, mesmo cercada de plantas e flores, o nariz não encontra o aroma que é tão familiar para Júlia.

Já o paladar, se fosse dar uma nota, a professora fala que de 0 a 10, a resposta é 1. "Tudo que eu mastigo parece isopor". A poucos dias das festas de fim de ano, nem o cheiro nem o gosto do peru vão chegar à casa da professora. "Será muito sem graça, o prazer de comer eu ainda não tenho completo, mas vou agradecer muito por estar viva".
Na lista de desejos, quem sabe para 2021, a professora quer começar o ano sentindo o cheiro do pão que ela gosta e sabe fazer muito bem. "Gostaria de sentir primeiro o cheiro do pão caseiro que deixa a casa tão cheirosa e eu não consigo sentir, de bolo, e o gosto do leite gelado que eu adoro tomar com açúcar", espera.
Cozinheira de profissão - Quem vive de saber o gosto e o cheiro que sai da cozinha direto para o prato do cliente tem sofrido ao depender dos outros para provar um prato. Cozinheira, Daniela Aguena, de 29 anos, conta que os sintomas começaram há quase um mês, dia 23 de novembro, e mesmo depois dos 15 dias de isolamento, ela retornou para a cozinha e nada de voltar a sentir o gosto ou o cheiro dos ingredientes.
"Agora que o paladar está voltando um pouquinho, mas só consigo identificar doce, salgado ou azedo. Pior é trabalhar na cozinha e ter que ficar pedindo para os outros provarem", desabafa.
Foram oito dias com sintomas que foram desde febre, dor de cabeça à perda dos dois sentidos somados ao cansaço. No dia a dia, apesar de saber de cabeça o que vai em casa receita, é instintivo querer provar o que se está preparando.
"É bem esquisito, porque não consigo sentir o cheiro nem provar pra saber se está dentro do padrão. Na dúvida, sempre peço para alguém provar e ver se está bom", explica a metodologia que foi adotada no trabalho.
Sobre a saudade, o cheiro que lhe vem à memória é o que todo mundo vai gosta na cozinha. "Cheiro da cebola refogando, ficando douradinha na panela", descreve. E o gosto, chega a ser decepcionante quando a cozinheira vê um prato tão gostoso como o hambúrguer diante dos olhos. "É muito sem graça, você vai comer uma comida que parece muito gostosa e sabe que vai ter gosto de papel".
Médico e residente de neurocirurgia do Instituto Estadual do cérebro Paulo Niemeyer, no Rio de Janeiro, o campo-grandense Paulo Zanin foi para a linha de frente logo no início da pandemia e passou a trabalhar no CTI específico de pacientes com covid. Em junho, depois de um espirro, ele passou a se sentir mal. "Quando eu espirrei, já pensei na hora 'estou com covid' e no dia seguinte eu acordei sem sentir cheiro, aí tive a certeza absoluta, afinal atualmente perdeu o cheiro é igual covid", recorda.

Depois do exame dar positivo, ele se afastou do trabalho por duas semanas e retornou. A volta às funções seguiram normalmente, mas os sentidos ficaram. "Meu olfato nunca mais voltou, digo que tenho 10%. Se coloco algo com cheiro muito forte próximo ao nariz, eu sinto, mas essa nuança de cheiros no ar, de comida sendo feita, esquece. Nada disso eu sinto", descreve.
A correria do dia a dia e as preocupações diante da pandemia o fizeram até esquecer. "Estou tranquilo, não estou sofrendo. Meu paladar mudou um pouco, mas acho até que já me acostumei", diz.
A causa - O médico explica que a causa está no vírus e didaticamente ilustra todo o processo. "Para se entender porque perdemos o olfato, tem que entender que o vírus é um pedaço solto de material genético que fica envolto em uma cápsula. Essas cápsulas possuem proteínas que são como chaves, cada chave abre um tipo de célula e o vírus precisa entrar na célula para se reproduzir, então ele usa todo o maquinário de replicação celular a favor dele para poder se multiplicar", descreve.
No caso do coronavírus, quem tem essa "fechadura" específica para que o vírus possa se multiplicar são células presentes no trato respiratório.
"Por isso ele é um vírus respiratório. No começo da pandemia, a gente achava que ele atacava o nervo, as células nervosas que levavam ao olfato, mas depois de um tempo viu-se que não, o vírus não ataca o neurônio, ele ataca a célula que dá suporte ao neurônio", ensina.
Ainda na aula de biologia que Paulo dá, para explicar o por quê do vírus nos tirar o olfato, o médico fala que para conseguir trabalhar de maneira eficiente, o neurônio precisa de suporte, suprimento sanguíneo e oxigênio, que é feito por um tipo de célula que está em volta dele.
"E são essas células que sofrem, não o neurônio. Por isso a perda de olfato não é irreversível, porque você não tem dano no neurônio, ele está ali, só que entra em modo de economia de energia porque não tem as condições adequadas para trabalhar", exemplifica.
Diferente dos demais vírus, que causam a perda de olfato porque estimulam a produção de muco que "tampa" o neurônio, de 80% a 90% dos pacientes que tiveram covid-19 terão melhora, e cerca de 5% terão um tipo de perda mais sustentada e podem precisar de estimulação olfativa.
Médico otorrinolaringologista, Celso Nanni, explica que a perda de olfato está ligada ao paladar. "Se você não sente o cheiro, se o olfato não está bom, o paladar perde o gosto. Seria como se fosse o efeito colateral de se perder o olfato, ter a alteração no paladar", descreve.
Para isso existem termos que vão desde a hiposmia, quando há diminuição parcial do paladar até a anosmia, usado para dizer que houve perda total e ainda a cacosmia, quando é o caso da paciente ter uma perversão, ou seja, uma alteração no olfato e paladar. "Ela tem cheiros e sabores desagradáveis", explica Celso.
Além do alimento, o olfato tem ligação com a sensação de prazer. "Uma das coisas que a gente tem é o prazer na alimentação e também ativar a memória. Então é um sentido muito importante para várias partes da nossa vivência social".
Segundo o otorrinolaringologista, a volta dos sentidos pode levar dias até algumas semanas. E há sim tratamento que deve ser acompanhado pelo médico para a estimulação do olfato.