Após 28 anos da morte de Marçal, execução de indígenas assombra MS
Das cinco balas que lhe tiraram a vida, uma acertou a boca. Estava calado o homem que fez da palavra a arma para denunciar o massacre de um povo
“Queremos dizer a Vossa Santidade a nossa miséria, a nossa tristeza pela morte de nossos líderes assassinados friamente por aqueles que tomam nosso chão, aquilo que para nós representa a própria vida e nossa sobrevivência neste grande Brasil, chamado um país cristão”.
O apelo do “pequeno deus” ao representante de Deus na terra ainda busca resposta em Mato Grosso do Sul. O discurso de Marçal de Souza Tupã-I, cuja tradução é pequeno deus, foi feito ao papa João Paulo II em 1980, no Amazonas.
Três anos depois, em 25 de novembro, o líder indígena seria morto na porta de casa em Antônio João. Das cinco balas que lhe tiraram a vida, uma acertou a boca. Estava calado o homem que fez da palavra a arma para denunciar o massacre de um povo.
Vinte e oito anos depois, as vésperas do aniversario da morte de Marçal, sua súplica segue a ter sentido. Nesta semana, índios denunciaram a invasão de um acampamento em Amambai e a execução do líder indígena Nísio Gomes, de 59 anos.
Símbolo de resistência, a vida e morte de Marçal, assassinado aos 63 anos, fizeram olhos do mundo se voltar para Mato Grosso do Sul. Ele foi a primeira pessoa nascida no Estado a discursar na ONU (Organização das Nações Unidas).
“No dia da exumação do corpo em Dourados, tinha jornalistas do mundo todo. Daqui, só estávamos eu pela Folha de Londrina e outro pela TV Campo Grande”, conta o jornalista Luiz Taques. Para ele, a história do homem cuja boa oratória deu voz ao drama dos guaranis deixou profunda admiração. “Dei o nome de Marçal para o meu filho”.
Durante a cobertura, o jornalista identificou a participação de um policial civil, que já tinha sido protagonista de reportagem sobre tortura policial. “Foram oferecidas denúncias contra quatro pistoleiros e o capataz, mas não foram aceitas”, recorda.
Em 1993, dez anos depois do crime, foram a júri popular o fazendeiro Libero Monteiro de Lima e Romulo Gamarra. A acusação teve a assistência do ex-deputado federal Luiz Eduardo Greenhalgh. Na defesa, o advogado Renê Siufi.
Os réus saíram absolvidos do tribunal. O mesmo resultado foi obtido cinco anos depois, em um segundo julgamento. “Houve protesto para que fosse realizado um terceiro julgamento, fora de Mato Grosso do Sul, mas não aconteceu”, recorda o deputado estadual Laerte Tetila (PT).
O mundo pede justiça - A luta por um julgamento justo foi encabeçada pela Anistia Internacional. “Chegaram mais de 300 cartas a Dourados. Vindas do Japão, Chile, Estados Unidos”, relata o deputado. Então professor em Dourados, Tetila conheceu Marçal de Souza em 1968.
“Ele veio à escola para falar no Dia do Índio. Foi um discurso sem perder o fio da meada. Ele tinha boa oratória, teve formação de pastor evangélico”, remeora.
Presente nos dois julgamentos, o deputado avalia que o prestígio pesou a favor do fazendeiro. “Era muito influente. A corda, como sempre, arrebentou para o lado mais fraco”.
Em 2003, depois de duas décadas, o crime prescreveu. Neste mesmo ano, em Juti, foi a vez de calar o líder indígena Marcos Verón, de 72 anos. A morte foi resultado de disputa pela terra indígena Takuara, na fazenda Brasília do Sul. Homens armados atacaram os índios guarani. Veron sofreu traumatismo craniano.
Vítimas - Em fevereiro deste ano, em júri realizado em São Paulo, três funcionários da fazenda foram condenados por sequestros, formação de quadrilha armada e tortura. O trio, que se livrou da acusação de homicídio, saiu em liberdade do tribunal.
Há dois meses, em Paranhos, foi morto o indígena Teodoro Recalde, de 33 anos. Ele era primo dos professores Genilvado Vera e Rolindo Vera, professores que desapareceram em 2009. Genivaldo foi encontrado morto, com sinais de espancamento. Rolindo nunca foi achado.
Em nome da terra - De acordo com dados do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), ligado à Igreja Católica, de 2003 a 2010 foram assassinados 250 índios em Mato Grosso do Sul.
Há três anos, o governo federal deflagrou processo de vistoria para demarcação de terras indígenas. Os produtores rurais acionaram a justiça para impedir a visita dos antropólogos e o processo só foi retomado no fim do ano passado.