Campo Grande acorda todos os dias de ressaca social e sem esperança de cura
Usuários de drogas dormem pelas calçadas de várias regiões e moradores dizem que a cena só piora
Doença sem combate se espalha. O uso de drogas é mais um reflexo dessa lógica em Campo Grande. As cenas antes vistas apenas no entorno da antiga rodoviária hoje são cenário triste em vários bairros. É uma ressaca social pelas calçadas de diferentes regiões, com dependentes químicos dormindo à luz do dia, depois de uma noite regada a “zuca” (pasta base de cocaína) e álcool.
“Me dá dezão que eu mostro pra você como eu faço minha misturinha (sic)”, diz um pai de 46 anos que há 5 não sabe do paradeiro do filho ou da família. A droga entrou e ocupou tudo na vida do encarregado de obras, hoje desempregado, magro, sem-teto e com apenas uma mochila surrada para guardar um pedaço de ferro que serve de cachimbo, além de isqueiro e camiseta de time que “arrumou por aí”.
Manda Pix - E nem a falta de dinheiro vivo impede de começar o dia abastecendo o cachimbo, “serve Pix”. Por volta da 6h da manhã de uma terça-feira, na Vila Nhanhá, ele divide a calçada com outras seis pessoas, todas visivelmente sob efeito das tragadas do dia anterior. “Não tem dinheiro? Tudo bem. A gente vai ali (na boca de fumo), pega o Pix do cara e você manda dez reais, aí fica de saldo pra gente. Se você fizer isso, deixo até você filmar eu fumando”, apela.
Ao lado, um parceiro de rua, de 35 anos, ri e confirma: “damos jeito pra tudo”. Aparentando ser muito mais velho, com os cabelos praticamente grudados na testa, ele conta a tragédia pessoal que começou “do nada”, com a bebida. “Virei alcoólatra. Mas me salvei. O problema é que quando me livrei da bebida, comecei a fumar (entorpecentes)”, relata com a fala “mole”, de palavras baixas e lentas.
Os dois contam que viviam na região da velha rodoviária, mas com a “polícia batendo lá direto” resolveram migrar para perto do fornecedor. “Aqui dá pra comprar o dia todo. Você não viu? Os bacanas já tão por aí, só preciso do dezão (sic)”, repete novamente o primeiro entrevistado, dentre vários outros com histórias de roteiro semelhante, jogados pelas calçadas da Nhanhá, do Tijuca, do bairro Amambaí, Tiradentes, Centro...
Dois dias sem dormir - Camuflados em cobertores sujos ou em roupas no mesmo tom da pele queimada pelo sol, muitos dormem depois de dias acordados. “Essa daqui trabalhou 48 horas direto, fazendo programa. Depois compra (droga), usa e ‘desmaia’”, diz outro rapaz, que garante desconhecer até a própria idade. Ao lado dele, nada abala o sono da mulher de roupa laranja fluorescente que vez ou outra mexe a cabeça encostada no muro.
De repente, uma mulher forte, com óculos coloridos e bem diferente das pessoas do lugar chega falando de um "pega pra capar" da segunda-feira, quando "a Aninha arrebentou outra na porrada no meio da rua". Ela senta, continua na fofoca, mas pede cachimbo e isqueiro, coloca um cobertor vermelho sobre a cabeça e corta o assunto, fumando um pó de cor amarelada, sem pudor.
"Ixi, já vi até advogada chegar bem aqui, aí vem no outro dia, no outro e agorinha tá aqui sentada com todo mundo", acrescenta um homem sem camisa que, como em um sopro, levanta da calçada só para ajeitar o boné.
Mundos paralelos - Seja na Rua do Trabalhador ou na Travessa da Passagem, os mundos dos dependentes e dos moradores seguem a rotina, sem um perturbar o outro. “Eu vivo há 40 anos aqui e te digo: não tem lugar melhor para morar, porque ninguém mexe com morador”, garante a senhora de 63 anos, de portão aberto e conversa animada com outros dois vizinhos da Rua do Trabalhador.
Na esquina, outro conhecido de décadas colhe algo verde na cerca de um terreno e grita que nasceu no bairro. Com maço de ora-pro-nóbis nas mãos, planta comestível de propriedades medicinais, ele parece surgir de um universo paralelo. “Vou fazer um suco pra começar bem o dia”, revela o professor de capoeira, já pegando o rumo de casa.
Antes, ele reforça a avaliação dos outros moradores ouvidos. “Sempre vi dependentes químicos perambulando pela região, mas nunca tantos como agora. Chuto que deve ter uns 200 aqui nesses quarteirões. De noite ferve. Mas só uns 15 devem ser daqui, o resto vem de tudo quanto é canto da cidade".
A conta não fecha - Se a contabilidade do morador estiver certa, realmente não há como reverter o quadro. Para centenas de pessoas perambulando pela Capital, o SUS oferece apenas 68 leitos psiquiátricos na cidade. Mesmo os convencidos a tentar a reabilitação têm de enfrentar uma fila por tratamento no sistema público de saúde.
Pela Nhanhá, é comum ver inscrições religiosas em fachadas estruturadas ou naquelas caindo aos pedaços, indicando que ali funciona uma igreja evangélica, mas a fé parece escassa quando o assunto é usuário de drogas.
"Já tentei fazer um projeto com capoeira para tirar eles das ruas, mas não vingou. Agora vivo minha vida”, conclui o morador fã de ora-pro-nóbis.
Epidemia sem vacina - E assim inicia mais um “dia normal”, onde nem a polícia incomoda. “Até porque não adianta. A polícia vai lá na antiga rodoviária, espalha esse povo e eles vêm para os bairros, depois voltam pra lá e assim vai. O problema não acaba, só cresce, qualquer um vê. É igual covid sem vacina”, compara o pedreiro aposentado que há 45 anos mora no bairro Tiradentes e acompanha a “epidemia do tóxico” avançar pela cidade.
“Antes, falavam só da gente (Tiradentes) e da Nhanhá. Agora, por onde você vai tem esse povo perambulando, pode ser até em bairro de rico. Você vai ver onde isso vai dar”, anuncia, sem detalhar suas previsões.
Do Tiradentes ao Centro, a dependência parece banal. Mães passam com carrinho de bebê ou com os filhos no colo, sem mudar o semblante ao cruzar com a legião de pessoas esparramadas ou encolhidas nas esquinas, ou que já montaram acampamento até no coreto da Praça Cuiabá, em outro lado da cidade, no fim da Avenida Duque de Caxias.
Só piora - No ponto de ônibus, jovem de 23 anos, de unhas artificiais longas e piercing no nariz, espera transporte para o expediente em salão de beleza do Centro, olhando as redes sociais no celular. “Não tenho medo que ninguém roube não (o celular). Só de noite que a coisa pega, aí meu marido vem me acompanhar até nossa casa”, comenta.
Ela lembra que ao chegar na região, há 3 anos, encontrou “alguns” andando por ali. Vinda do interior, o marido sempre morou na mesma casa e de pronto acalmou a esposa: “Ele me disse que ninguém perturba morador não”.
Para todo os entrevistados pelo Campo Grande News, nos dois mundos que transitam pelos bairros onde a droga é livremente comercializada, não há luz no fim do túnel. “Nunca vi ninguém vir aqui prestar socorro e a coisa só piora. Não tem para onde correr. Quero ver convencer algum deles a fazer tratamento, se não tem nem para onde levar”, reclama a jovem.
Queria emprego, achou a droga - Na região central, dos altos da 14 de Julho até o início da Avenida Calógeras, a manhã também começa com o sono a céu aberto. São dezenas de homens e mulheres dormindo ou recolhendo trapos para começar tudo de novo: pedir nos semáforos, furtar e comprar pasta base.
Rapaz que veio de São Paulo diz que “parou” ali porque chegou em Campo Grande e “se afundou nas drogas”. "Queria emprego, mas encontrei primeiro a bebida, depois as paradinhas pra fumar".
Ele garante que logo procurou ajuda no Centro POP (Centro de Referência Especializado à População em Situação de Rua), mantido pela prefeitura na Rua Joel Dibo. Mas jura que nem sequer recebeu um prato de comida.
Sem prevenção - Anteriormente, ao rebater reclamações de empresários do Centro sobre a “invasão” de usuários de droga, o secretário de Assistência Social, José Mário Antunes, garantiu que a prefeitura tenta ampliar o atendimento, mas argumenta que o “preconceito prejudica a prefeitura na hora de alugar um prédio para acolher os dependentes químicos.
“Em qualquer lugar que você coloca Centro POP, ninguém quer. É uma situação bastante complicada para essa população. É uma rejeição total a essa população, infelizmente. Também não podemos forçar nenhum morador de rua a ir para o Centro POP ou para alguma clínica de reabilitação”, alegou.
A prefeitura não fala de medidas preventivas, mas assegura que, quando a pessoa abordada aceita o acolhimento da Assistência Social, é encaminhada para o CAPS (Centro de Assistência Psicossocial), para primeira desintoxicação e em seguida vai para abrigo ou para uma das unidades terapêuticas conveniadas.
Sem vagas - “Cara, cada vez fica mais difícil pra gente. Procurei tratamento, mas nunca tem vaga. Não adianta nem a gente querer. Antes, ia caminhando lá no Tijuca pegar comida na Associação de Moradores, dava até para repetir. Agora, o pratinho é pequeninho e quase nem servem mais a gente”, reclama.
Realmente a associação quase não abre mais para alimentar a população de rua. Mesmo assim, o movimento segue forte, com muitos dormindo na terra vermelha, porque nem calçada parte do bairro tem.
Enquanto na Nhanhá as igrejas são febre, no Tijuca as placas de compra de cobre ocupam praticamente todas as esquinas, mais um reflexo do que deveria ser tratado como questão de saúde pública, mas é enfrentado na base da repressão.
“É assim olha: a gente ia lá comer (Tijuca), daí começou a ver as plaquinhas e agora, sempre que arruma um fiozinho (de cobre) leva pra vender. Dá pra se divertir”, confessa ladrão de fios de cobre usados como moeda de troca pela “misturinha” que, assim como o nome, é mantido em sigilo.
Prevenir é melhor que remediar - Com doutorado concluído na Espanha, os 30 anos de experiência levaram o psicólogo José Ricardo Cunha a representar o Brasil na ONU (Organização das Nações Unidas) no debate sobre prevenção integral.
Os primeiros contatos com casos graves de dependência química ocorreram quando ele era diretor do Instituto Penal de Campo Grande, cargo que assumiu por três vezes. Ele ri ao ser chamado de “Dráuzio Varella” de Mato Grosso do Sul, por conta do trabalho com presos, mas volta ao tom sério quando a pergunta é sobre o principal entorpecente usado na cidade. “Tem as drogas batizadas com menor preço e maior poder de modificação do psiquismo, como a zuca, a pasta base e outras associadas ao álcool barato...”.
Após tanto tempo dedicado ao assunto, as frustrações comprovam dia a dia o quanto é nociva a ausência de um programa integrado de prevenção ao uso e abuso de drogas. "Percebe-se o esforço de grupos religiosos, grupos de ex-dependentes, e outras instituições, mas praticamente sem grande poder de atingir a maioria dos usuários. Falta realmente uma política estadual integrada de fiscalização, repressão e prevenção", analisa.
Nesse caminho, o maior obstáculo é a falta de dinheiro, diz. “Os estados recebem uma parte da verba arrecadada pelos leilões dos bens apreendidos com o tráfico de drogas, mas é muito complexo, demorado e pouco, frente às necessidades”.
Assim como a tese de que a família é a maior proteção contra o consumo de álcool e outras drogas, estudo que garantiu a ele o título de doutor, a grande aposta feita por José Ricardo é evitar o estágio da dependência estruturando o núcleo familiar.
Precisamos de política pública mais eficiente de valorização da vida e fortalecimento das famílias. É muito mais sério que a sociedade pensa. Estamos chegando em um momento que toda família terá alguém envolvido com o consumo de substâncias psicoativas”, alerta o doutor no assunto.
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