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Capital

Por sua sobrevivência, pichação deixa Centro e se refugia na periferia

Após caça aos pichadores em São Paulo, adeptos da mais controversa intervenção urbana em Campo Grande abandonam região central e vivem rotina de exploração nos bairros

Rafael Ribeiro, Marcus Moura e Yarima Mecchi | 07/06/2017 12:57
Enquanto a caça não se intensifica na Capital, pichadores se adaptam para seguir manifestações (Foto: Marcos Ermínio)
Enquanto a caça não se intensifica na Capital, pichadores se adaptam para seguir manifestações (Foto: Marcos Ermínio)

O ritual é sagrado: uma vez por semana, sempre no fim da noite e início da madrugada, o grupo se reúne. Há várias faixas etárias, de jovens a adultos casados, alguns com filhos. O objetivo é deixar suas marcas nas ruas de Campo Grande através da pichação.

Assunto polêmico na essência e que retomou manchetes neste ano após o prefeito de São Paulo, João Dória (PSDB), abrir uma cruzada contra os pichadores. Na capital sul-mato-grossense ‘os amantes da pintura’, como muitos se definem, confessam estar receosos. E por isso a briga por espaço foi para a periferia.


“No Centro é ‘moiado’ (sic). Parece que desde que começou essa guerra em São Paulo resolveram ampliar a caça por aqui. O próprio povão ta mais ligeiro, se nos veem, ligam para o 190”, disse Maicon, 29 anos, há 12 deles na ‘pintura.’


A experiência, que já lhe rendeu cinco prisões e autuações, foi suficiente para Maicon acompanhar a transformação da pichação campo-grandense. De mensagens de amor, ofensas e até propaganda política, a chegada das primeiras filiais de torcidas organizadas dos times paulistanos, no início dos anos 2000, marcou o início desenfreado da busca por espaços brancos na cidade.


“Antes era uma coisa distinta, um ou outro que vinha de fora começava a manter o vício nas paredes”, ri Maicon. “Quando as organizadas vieram, começaram a ‘atropelar’ essas escritas, promover brigas e forçar a estruturação dos grupos”, completou.


Vinte anos depois de São Paulo, pioneira na ‘arte’, a pichação na Capital inicia o modelo estrutural mais semelhante ao das maiores cidades brasileiras, com regras e normas de conduta, estabelecidas muitas vezes na violência. ‘Grupo de pintor’ se une para escrever, desenhar ou assinar a mesma coisa. Marcar território. ‘Atropelar’, ou seja, desenhar por cima, é conflito só resolvido com briga. Assim como imitar o formato dos caracteres.

Paulistano em ação: experiência de SP ajudou a organizar a cena da pichação em Campo Grande (Foto: André Bittar)
Paulistano em ação: experiência de SP ajudou a organizar a cena da pichação em Campo Grande (Foto: André Bittar)

Liderança - A tatuagem no braço direito entrega um dos termos mais vistos por toda a cidade. Muros de prédios, bancos, terrenos baldios e até igrejas em todas as regiões da cidade carregam o apelido desse paulistano de 36 anos. Desde 2002 em Campo Grande, mudança forçada pelo pai militar, transferido, ele acompanhou o processo de crescimento e fortalecimento da pichação.

“Nome? Você sabe, pichador é conhecido pelo que escreve no muro”, sacramentou, aos risos. Pouco depois, se arrepende. “Não põe não, senão o pessoal vai me chamar de X9”, disse, referindo-se ao apelido de quem revela o que não deveria.


É uma tarde de quarta-feira quando o Campo Grande News o encontra em uma rua isolada do Nova Lima (zona norte). A confiança inicial dá lugar a um medo quando uma viatura da PM passa pelo local. “Só um risco está bom”, ordena, com voz firme, interrompendo a rápida sessão de fotos.

O medo é plausível. O paulistano, 12 prisões em São Paulo, veio a Campo Grande com a promessa feita ao pai de largar os sprays. Evidente que outras detenções acumuladas na Capital nesses anos comprovam que o pedido paterno não foi cumprido.

Aquele início de milênio o deixou irritado particularmente por flagrar um grupo de “pirralhos”, como ele define, apanhando de integrantes da organizada na região central. “Foi uma traíragem das grandes. Ninguém estava acostumado com regras aqui. Tinha que começar”, disse.

E começou, evoluiu, como ele define, cresceu e se expandiu. Se atualmente a busca pela ‘pintura’ é na periferia, foi o paulistano quem iniciou o movimento. “Eu tinha todo o espaço do mundo. Nunca formei grupo por isso, sempre sozinho porque tinha Campo Grande inteira à minha disposição. E fugia né”, disse, referindo-se ao que chama de repressão.

“No Centro os caras fiscalizam mais. E eu tava cansado de apanhar. Tomei chute no saco, levei tinta na cara. Nem assassino de criança apanha tanto e é tão julgado quanto pichador. Mas faz parte do pacote. A pichação atrai por isso. É um jogo, de marcar território, adrenalina. Não tem arte, é marginalidade mesmo, como deve ser”, definiu.

Aceito 'moralmente', grafite é considerado forma de arte e cativa até autoridades, como os Bombeiros (Foto: Marcos Ermínio)
Aceito 'moralmente', grafite é considerado forma de arte e cativa até autoridades, como os Bombeiros (Foto: Marcos Ermínio)

Ação – São 21h de uma segunda-feira quando o grupo citado no início se reúne em uma praça da Vila Piratininga (zona sul). Os locais de encontros são decididos um dia antes, por whats up. O aplicativo facilitou a ação dos pichadores. Antes usavam redes sociais. “Os grupos eram fixos e sempre tinha policial ou guarda infiltrado”, conta um adolescente de 17 anos. Também evita-se o risco de um grupo rival ‘roubar’ o espaço escolhido.

Pelo risco de sofrer sanções mais brandas por conta da idade é ele quem carrega o jato, uma espécie de spray mais potente, com componentes elétricos, que diminui o tempo das pichações, permite escritos maiores e limita os riscos de flagrante. Praticamente um assessório obrigatório atualmente.


O grupo sai de carro até a região do Monte Castelo (zona norte). Estão em quatro. O adolescente ‘pinta’, os outros ficam de guarda. O muro de uma transportadora é o local escolhido. Tem um ponto de ônibus na frente. Visibilidade grande, principalmente para rivais. Demora-se três minutos, tempo alongado por conta do medo que os latidos de um cachorro causa.


“Dá mais medo segurança do que polícia. Em Campo Grande tem muito cara que anda armado e nos ameaça de forma séria. Polícia, guarda bate, esculacha, mas não perdemos a vida”, disse um dos mais velhos do grupo, de 24 anos.

A apreensão e adrenalina dão lugar à euforia. O jato é escondido no porta malas. O grupo dá uma volta no quarteirão e para diante da marcação recém-feita. Tiram fotos. Troféu garantido. “Se aqueles merdas (sic) atropelarem vamos cair na porrada mesmo. Ficou massa demais”, apontou o único que não dá nenhum tipo de identificação do grupo, alto e usando uma blusa de moletom mesmo com a noite quente, referindo-se principalmente a um grupo rival. 

“São safados, fazem para provocar e arrumar briga. Pois vão ter”, endossou. “Não vai ter algo na sua vida que dará mais emoção que isso”, diz o adolescente no percurso de volta ao Piratininga. Viagem interrompida para a compra de cerveja em uma conveniência. “Tem que comemorar”, completou o jovem.

E depois? Nada falam. Resta aos escolhidos aguardarem se serão ou não incluídos no novo grupo de whats up que será criado. “O que falta na pichação é união. Não brigamos pelo que é nosso, não nos defendemos e sempre estamos brigando. Facilita para quem é contra. Mas não tem jeito, não vai acabar nunca. Toda cidade grande tem e terá o resto dos tempos”, disse o jovem de moletom.

Natasha Miranda em seu atêlier: arte popular não pode ser confundida com picho (Foto: André Bittar)
Natasha Miranda em seu atêlier: arte popular não pode ser confundida com picho (Foto: André Bittar)

Debate – Arte? Intervenção urbana? Ou coisa de bandido? Para a artista plástica Natasha Figueiredo Miranda, 43, a única diferença da pichação com o grafite é a aceitação estética do segundo. “Mas isso não significa que ambos não tenham mensagem. O homem começou a se expressar desde a pré história com as pinturas nas cavernas e, a partir disso, a arte só evoluiu”, definiu a também estudante de arquitetura.

Para ela, a diferença, contudo, é a legalidade da pintura. “Ainda existe muito preconceito com essa forma de arte, as pessoas confundem grafite com pichação. É necessário entender que mesmo que seja um desenho super elaborado, se não tiver autorização é pichação”, disse.

Na opinião de Natasha, a evolução da pichação para o grafite é o pontapé para que as intervenções artísticas nas ruas se tornem totalmente aceitáveis. “O grafite fala com a cidade, ele reflete o tempo e o espaço social, é uma arte mais democrática por estar na rua, mais acessível”, completou.

Oficial – Assim como o colega paulistano, a gestão de Marquinhos Trad (PSD) na Prefeitura também iniciará uma caça aos pichadores. A Secretaria Municipal de Segurança e Defesa Social promete iniciar parceria com a Polícia Civil, como aconteceu em São Paulo, para fazer os levantamentos dos grupos de pichadores, principalmente nos bairros, e fazer prisões e detenções.

O trabalho não tem prazo para seu início. “A Prefeitura não é contra a arte e o grafite, principalmente. Vamos incentivar sempre que possível a ocupação da cidade por essa intervenção artística. Mas não vamos tolerar pichadores. Não há arte. E os prédios públicos quase sempre são os alvos”, disse o prefeito.

Loja abandonada no Centro evidencia maior das reclamações: a falta de espaço e a fácil exposição (Foto: Marcos Ermínio)
Loja abandonada no Centro evidencia maior das reclamações: a falta de espaço e a fácil exposição (Foto: Marcos Ermínio)
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