Sonho de morar melhor foi embora com Ong 'sem teto', dizem moradores
Casas "construídas" para abrigar ex moradores da favela estão sem nenhum acabamento, eles continuam vivendo em barracos
Para quem morou em um barraco durante mais de quatro anos, ver a casa sendo construída, tijolo a tijolo, era esperança de vida melhor, sonho realizado. Mas a alegria dos moradores da favela Cidade de Deus, que estavam certos de que teriam uma moradia decente depois de serem transferidos para áreas da prefeitura, durou pouco.
Desde março, data da transferência, eles aguardam a finalização da construção das moradias que, por enquanto, estão só nas paredes, sem nenhum acabamento.
Vivendo em um barraco aos fundos de uma casa sem teto, janelas e portas, a estudante Fernanda Souza, 18 anos, viu a esperança de morar em um lugar melhor ir embora junto com o fim dos materiais de construção na obra em seu terreno. “Quando eles estavam mexendo era lindo, ficamos felizes, mas ai veio a tristeza depois que tudo acabou”, diz.
Sentimento compartilhado pela vizinha Lidiane da Conceição, 25 anos. Com quatro filhos, com idades entre quatro e 10 anos, ela acreditava que com a transferência poderia oferecer um lugar mais digno às crianças, o que não aconteceu. “Vivemos nas mesmas condições de antes. Acredito que as casas vão sair, mas vai demorar”, afirma.
O que conforta a maioria dos moradores do conjunto é poder viver em um espaço que agora é deles, sem gambiarra ou invasão. “Por muito tempo paguei aluguel, passava dificuldade, depois fui para o barraco e agora só de ter um terreno próprio, pra mim é vantagem. Tenho cinco filhos e só de um lugar para colocá-los e dizer que é nosso, já melhora muito a situação”, considera o pedreiro, Fausto da Conceição, 33 anos.
No prejuízo - Mas a regularização dos terrenos, com a água e energia elétrica também regularizadas, que é vantagem para uns, acabou se tornando tormento para a catadora de recicláveis Sheila Gonçalves, 57 anos.
Ela conta que durante a construção das paredes das casas, um funcionário da Morhar Organização Social, que é responsável pelas obras, pediu para usar água e luz da casa dela, dizendo que ao final das construções acertaria o pagamento com ela.
“De R$ 25 ou R$ 30 agora minhas contas passaram para R$ 252 a água e R$ 183 de energia. Estou desesperada, não sei o que fazer para pagar”, diz a mulher, mostrando os boletos das dívidas.
Morhar sem teto - Há pelo menos duas semanas, as obras estão paradas nos quatro bairros para onde as 314 famílias da favela foram transferidas: Vespasiano Martins, Canguru, Pedro Teruel e Bom Retiro.
A Morhar Organização Social, responsável pela obra, não fornece material e não paga os trabalhadores, que são os próprios moradores dos loteamentos.
Por ironia, quando é procurada para prestar esclarecimentos sobre as obras paradas e a falta de pagamentos, a sede física da ONG não é encontrada.
O Campo Grande News visitou três endereços, onde havia notícias da organização, sendo eles na Rua Cyro Bueno, na Vila Planalto, Rua Dr. Antônio Alves Arantes, 429, no bairro Chácara Cachoeira e Rua Cachoeira, na Vila Manoel Taveira, mas ninguém da ONG foi encontrado.
Não bastasse o mistério sobre onde funciona a Morhar, o presidente da entidade, Rodrigo da Silva Lopes, “desapareceu”. A reportagem tentou contato com ele por telefone, mas o celular só dá sinal de desligado.
Milhões para nada - A reportagem então entrou em contato com a prefeitura, no início da tarde de ontem (17), para saber o posicionamento diante das cobranças realizadas pelos moradores, já que a Morhar é responsável pelas obras em convênio com o Executivo.
Em resposta, a assessoria de comunicação informou que a prefeitura não possuiu nenhum vínculo empregatício com os trabalhadores que estão com os salários atrasados, já que o convênio foi firmado para a construção de 300 casas por meio do programa de mutirão assistido e o Município está em dia com os compromissos feitos com a entidade.
O convênio 175, entre a Morhar e a prefeitura foi publicado no dia 21 de junho, com valor de R$ 3,6 milhões. O montante milionário seria para ressarcimento de despesas na construção de 300 unidades habitacionais, destinadas à acomodação das famílias remanejadas da favela, que hoje estão sem teto, janelas, portas, praticamente nada.
Investigada – A ONG é alvo de investigação do MPF (Ministério Público Federal). O inquérito foi aberto em 2014 e, segundo a assessoria de imprensa, a Procuradoria da República em Mato Grosso do Sul acompanha a evolução da obra junto com a Caixa Econômica Federal, que constatou a paralisação. O MPF, entretanto, não informou que providências vai tomar a respeito do abandono das construções.
Em 2012, a Morhar iniciou a construção de 42 casas no assentamento Vale do Sol. Cada uma delas custaria R$ 28,5 mil às famílias donas dos lotes, que já até pagaram a primeira parcela, de R$ 285, pela obra.