“Não tem bala perdida” é regra da paz na fronteira, mas com alerta nos EUA
Ética particular é de que execuções só atingem quem “deve”, mas Ponta Porã tem taxa de homicídio de área em conflito
Domingo, 19 de janeiro. Uma fuga em massa de presos põe a fronteira entre Pedro Juan Caballero e Ponta Porã no noticiário do Brasil e do mundo. As informações vão desde o fechamento da Linha Internacional, que divide Mato Grosso do Sul e Paraguai, local da escandalosa fuga, ao deslocamento maciço de forças policias para a região. Quatro dias antes, a mesma fronteira entrou no alerta dos Estados Unidos, que elabora um “aonde não ir” em território brasileiro.
Segunda-feira, 20 de janeiro. O sol ilumina a manhã em Ponta Porã, enquanto o malabarista de camiseta da seleção argentina exibe sua arte no semáforo; o frentista do posto de combustível cumprimenta, animado, os visitantes do carro com placas de Campo Grande; e a Linha Internacional segue como sempre: escancarada para toda sorte de comércio, dos perfumes ao tráfico.
É só caminhando por essas ruas que se entende a paz da “Princesinha dos Ervais”, o nome fantasia de Ponta Porã. Por lá, homens e mulheres, moradores e comerciantes, repetem a regra mais clara da fronteira: “Aqui não tem bala perdida”.
Essa ética particular, de que execuções só atingem quem “deve”, explica a paz de quem mora na cidade de 95.526 habitantes. Mas a regra é explicada por entrevistados que não podem dar nome completo ou aparecer em fotografias. Não que a cidade fronteiriça tenha a maior concentração de tímidos por metro quadrado, mas também faz parte da cultura de paz sem voz, que nos leva à reflexão se paz sem voz é paz ou medo?
“As pessoas acham que aqui se mata por esporte”
Num dos pontos em que a Linha Internacional em que MS e Paraguai mais se aproximam, uma comerciante conta que mora em Ponta Porã há 30 anos. “Graças a Deus, nunca tive problema”, diz, sem quere divulgar o nome. A parede do imóvel exibe a “cicatriz” de um tiro. Ela relata que já aconteceram execuções à esquerda e à direita de onde trabalha.
Para a mulher, resta claro que foragidos do presídio de Pedro Juan Caballero vão evitar a zona urbana de Ponta Porã. A dificuldade tem sido acalmar os parentes que moram no Paraná. “Eles ficam apavorados”, diz.
De costas para a porta, na loja que comercializa roupas, uma mulher trabalha concentrada para transferir as pérolas que ornamentam o decote de uma blusa para uma caixinha de costura. Aparentemente, a única medida de segurança é uma câmera. A mulher de 40 anos, em mais uma entrevista sem nome, diz que já foi assaltada na rua, uma situação de violência que poderia se repetir em qualquer cidade brasileira.
“As pessoas acham que aqui tem uma morte em cada esquina, que se mata por esporte”, afirma. Ela diz que a má fama chega a Assunção, capital paraguaia, para onde costuma viajar. “Quem não mexe com isso, não tem problema. Aqui todo mundo conhece todo mundo e sabe com quem mexe”, afirma. O “isso” citado por ela é o tráfico. Os entrevistados também não citam PCC (Primeiro Comando da Capital), que é substituído pelo genérico “aquela facção”.
Os moradores reclamam do tratamento dado pela imprensa, onde a cidade é mencionada como terra sem lei e sempre pedem à reportagem para que contem que do lado de cá da fronteira a vida das pessoas “de bem” segue tranquila.
Para 2020, Ponta Porã, a quinta maior cidade de Mato Grosso do Sul, tem orçamento de R$ 401 milhões. As principais atividades econômicas, lícitas, são agricultura, pecuária e comércio.
Execuções cirúrgicas e taxa de homicídio nas alturas
Em Ponta Porã, a lembrança mais recente de alguém atingido por acaso em ação de execução data de quase três anos. No caso, uma pessoa que estava na rua foi atingida por estilhaços, sem ferimento grave.
No mais, seja nas avenidas, nas ruas, em residências ou até no maior shopping da fronteira, as ações com arma de grosso calibre não provocam clamor de vitimar “inocentes”. A leitura decorre de uma ética particular, porque, afinal, homicídio ou tentativa de assassinato é crime no Brasil, onde não há previsão legal de pena de morte.
No ano passado, a Polícia Civil registrou 54 homicídios dolosos em Ponta Porã. A taxa foi de 58,4 mortes para cada cem mil habitantes. A ONU (Organizações das Nações Unidas) considera aceitável taxa de até 10. No ano de 2018, a cidade fronteiriça teve 32 assassinatos.
De acordo com o delegado Fabrício Dias, titular da 1ª Delegacia de Polícia Civil, o aumento dos homicídios tem relação com o tráfico, como a disputa entre facções e desentendimento entre traficantes. “Algumas ocorrências estão relacionadas a crimes passionais. Mas a maior parte, aproximadamente 80%, é relacionada ao tráfico”, diz.
Até dezembro, conforme a Sejusp (Secretaria de Justiça e Segurança e Pública), Ponta Porã tinha redução de 34% nos furtos e média de dois roubos a comércio registrados por mês.
A análise é de que traficantes punem ladrões de veículos e autores de latrocínio (roubo seguido de morte) porque essas modalidades de crimes aumentam a sensação de insegurança. O clamor público resulta em grandes operações policiais, que sufocam o escoamento da droga.
Briga do agricultor e entregador: armas e PCC
De volta ao domingo, a fuga em massa no presídio de Pedro Juan Caballero leva para Ponta Porã equipes da Derf (Delegacia Especializada de Roubos e Furtos) e do Garras (Delegacia Especializada Repressão a Roubos a Banco, Assaltos e Sequestro).
Na passagem pela Avenida Brasil - via com agências bancárias, hotéis e restaurantes – uma briga de trânsito, com homens armados, destoa da paz. Por volta de 22h, as equipes avistaram dois homens portando armas de fogo e discutindo. De um lado da contenda, estava Fábio Lopez Vilhalva, 23 anos. Do outro, Edson Barbosa Salinas, 32 anos.
Fábio, que estava com uma pistola calibre 9 milímetros, informou ser ajudante de entrega e anexou holerite com remuneração pouco superior a mil reais. Edson Salinas, preso com pistola calibre .380, R$ 4.250 e 4.500 dólares, afirmou que sua profissão era agricultor, mas sem emprego fixo por trabalhar como autônomo.
Já relatório da Polícia Civil aponta Edson Salinas como sucessor “extramuros” de Minotauro, o traficante Sérgio de Arruda Quintiliano Netto, líder do PCC. Conforme o documento, ele é responsável por ordenar pelo menos dois assassinatos na fronteira: o da advogada Laura Marcela Casuso (em Pedro Juan) e do empresário e ex-candidato a prefeito Chico Gimenez, tio do narcotraficante Jarvis Gimenes Pavão, que cumpre pena em presídio federal no Brasil.
Lamento pelo reforços só nas crises
A fuga de 76 presos no Paraguai, sendo 40 brasileiros, colocou a fronteira em alerta, com um roteiro de entrevista coletivas de autoridades e post do ministro da Justiça, Sergio Moro, em rede social, prometendo colocar os foragidos do PCC em presídio federal. No domingo, dia da fuga, a PF (Polícia Federal) foi para as ruas de Ponta Porã, com auxílio de efetivo de 15 homens da Força Nacional de Segurança.
Na segunda-feira, policiais federais não fizeram mais ação de fiscalização relativa à fuga, descartando reforço para atuar na região. Equipes do Garras, Derf e Bope (Batalhão de Operações Especiais) foram deslocadas para Ponta Porã. O DOF (Departamento de Operações de Fronteira) aumentou as rondas na zona rural do município. No domingo, moradores também contaram que um helicóptero da segurança pública circulou pelo céu fronteiriço.
O lamento é que os reforços são episódicos. “A gente não tem como prever se todos os foragidos vão ser recapturados. Mas pelo menos estão aqui, ter a presença do Estado de investigação é importante. Em Ponta Porã, o efetivo é diminuto. Tem 12 policiais militares fazendo escolta e isso dá quase 10% do efetivo. São detalhes que fariam uma diferença muito grande para Ponta Porã”, afirma o conselheiro federal e corregedor adjunto da OAB nacional (Ordem dos Advogados do Brasil), Luiz Renê Gonçalves do Amaral, que atua na cidade.
A reportagem solicitou informações à Sejusp sobre a taxa de esclarecimento de homicídios em Ponta Porã e reforço permanente de segurança na cidade fronteiriça, mas não obteve retorno até a publicação da matéria.