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Cidades

Nos trilhos da memória: ferroviários lembram época em que trem era vida

Trabalhadores se reúnem diversas vezes na antiga estação para manterem laços

Osvaldo Júnior | 29/03/2018 06:38
Nelson, com uniforme que guarda há anos como lembrança de quando trabalhava na Estação Ferroviária de Campo Grande (Foto: Roberto Higa)
Nelson, com uniforme que guarda há anos como lembrança de quando trabalhava na Estação Ferroviária de Campo Grande (Foto: Roberto Higa)
Nos trilhos da memória: ferroviários lembram época em que trem era vida

Antônio pescou muito pacu em Porto Esperança sentado na beira de vagão de trem. Silvano nasceu dentro de uma estação. Aos dez anos, Daniel já ajudava a consertar dormentes. Nelson conduziu trem durante quase metade de sua vida. Gildson, dos 12 aos 15 anos, estudou na “escolinha ferroviária” em Bauru e foi veterano de Marcos Pontes, o primeiro astronauta do Brasil e da América do Sul a ir ao espaço.

Os trilhos permeiam as vidas de todos eles. E para abrandar a saudade, esses trabalhadores da antiga NOB (Estrada de Ferro Noroeste do Brasil), companhia que operava a rede ferroviária de Bauru (SP) a Corumbá, encontram-se na velha estação, hoje Armazém Cultural de Campo Grande.

Eles fazem parte da Associação dos Ferroviários, Aposentados, Pensionistas, Demitidos e Idosos (Afapedi), que promove encontros como forma de tornar o passado tão presente quanto Às lembranças desses pessoas.

“Dá muita tristeza”, diz Daniel Gomes da Cunha, 73 anos, ao comparar o vazio que vê a seu redor na antiga estação ferroviária e o movimento no local que traz em sua memória. “Aqui ficava lotado. Tinha muita gente comprando nas bilheiras, na primeira classe, na segunda classe...”, lembra-se.

Daniel, atual diretor da Afapedi, começou a trabalhar na ferrovia em 1949, quando tinha dez anos. “Eu era conservador de vias permanentes”, conta. Na prática, ele ajudava na manutenção dos trilhos. “Quando tinha 18 anos passei a ser encarregado de expediente, trabalhando no escritório”, acrescenta.

Estar no Armazém Cultural é uma forma de Daniel se aproximar de suas lembranças, carregando-as de vida. “Trabalhei aqui por 37 anos”, conta, silenciando-se, em seguida, possivelmente para enxergar melhor as imagens do passado. “Era cheio aqui. Hoje, tá tudo vazio”, compara.

Silvano, que fazia manutenção de trilhos quando ainda era criança (Foto: Roberto Higa)
Silvano, que fazia manutenção de trilhos quando ainda era criança (Foto: Roberto Higa)

“Meu avô foi ferroviário, meu pai ferroviário; minha família é de ferroviários”, conta, com orgulho, Silvano Soares de Souza, 62 anos. Ele ainda tem as carteiras profissionais dos diversos cargos que ocupou durante o tempo em que foi ferroviário. A mais antiga data de 23 de agosto de 1981, quando Silvano foi contratado como manobrador. Na foto da carteira, está a imagem de um homem de 25 anos com cabelos black power, no estilo da época.

“Meu pai morava na estação de Tamanduá Bandeira [perto do município de Ribas do Rio Pardo] quando era solteiro. Ele se casou e continuou morando lá. Foi nessa estação que minha me teve e minha avó foi parteira”, relata.

“No começo, eu fui manobrador, que é a pessoa que engata os vagões”, rememora. Silvano foi subindo de cargos até chegar a maquinista. “Tenho muita saudade daquele tempo. Por isso, venho muito aqui [no Armazém]. Às vezes, chega um colega antigo, que você não vê há mais de dez anos. É muito bom!”, comentou.

Nelson guarda a carteira, como "prova" de que trabalhou na ferrovia (Foto: Roberto Higa)
Nelson guarda a carteira, como "prova" de que trabalhou na ferrovia (Foto: Roberto Higa)

Nelson Pereira de Araújo, 58 anos, não nasceu dentro de estação, mas morava perto de uma desde bebê. “Também sou filho de ferroviário. A gente morava em uma vila de ferroviários, em Água Clara. Ficava na frente da estação”, conta.

Ele entrou na NOB em 1984 como auxiliar de maquinista. Cinco anos depois, tornou-se maquinista e assim ficou até 2009. “Foram 26 anos na ferrovia”. Nos últimos anos da atividade de Nelson, já não havia mais a estação de Campo Grande, que foi desativada, definitivamente, em 2004, dando lugar ao Armazém Cultural. Mas antes disso, em 1996, saiu da estação o último trem.

Gidson, terena que foi veterano do astronauta Marcos Pontes na "escolinha da ferroviária" (Foto: Roberto Higa)
Gidson, terena que foi veterano do astronauta Marcos Pontes na "escolinha da ferroviária" (Foto: Roberto Higa)

Entre os orgulhos do terena Gildson Manoel Sobrinho, 60 anos, está o de ter conhecido Marcos Pontes, tenente-coronel da reserva da FAB (Força Aérea Brasileira) e primeiro astronauta sul-americano e lusófono a ir ao espaço.

Gildson, nascido na aldeia Taunay, em Aquidauana, conheceu Marcos Pontes na adolescência, quando era aprendiz de mecânico de locomotivas na escola do Senai, apelidada de “escolinha ferroviária”, em Bauru. “Estudei lá dos 12 aos 15 anos”, detalha. Depois, Gildson foi contratado e trabalhou a maior parte do tempo como maquinista.

Antônio, com uma de suas ferramentas de trabalho, um picotador de passagens; ele já pescou de dentro de vagões (Foto: Roberto Higa)
Antônio, com uma de suas ferramentas de trabalho, um picotador de passagens; ele já pescou de dentro de vagões (Foto: Roberto Higa)

No guarda-roupas de Antônio Marques da Silva, 60 anos, há uma peça valiosa: o uniforme e o quepe usados por ele na época em que trabalhou como agente especial de trem da RFFSA (Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima). “Tenho essa roupa guardadinha em casa com muito orgulho”, diz Antônio, com sotaque característico de Cuiabá, cidade onde nasceu.

Com o uniforme, quepe e o crachá, Antônio voltou alguns anos de sua vida ao posar para foto desta reportagem. Ele mora perto da antiga estação. Em frente à sua casa, construção típica dos funcionários da companhia ferroviária, a rua é cascalhada, como é “desde sempre”.

“Fui manobrador de 1980 a 1983 em Porto Esperança. Depois fiz concurso interno e me tornei auxiliar de agente de trem”, conta. Antônio também trabalhou como picotador de passagens – tem sua ferramenta de trabalho até hoje – e como agente especial de trem.

Entre as lembranças do cuiabano Antônio estão as pescarias que fazia de dentro do trem. “Na época de cheia do rio dava pra pescar lá em Porto Esperança de dentro do vagão. Pesquei muito pacu, pintado... Era um tempo bom”, finaliza, fisgando um pouco do tempo em que muitas vidas se encontravam nos vagões do Trem do Pantanal.

Passageiros esperando por trem na estação de Campo Grande no ano de 1981 (Foto: Roberto Higa/Arquivo)
Passageiros esperando por trem na estação de Campo Grande no ano de 1981 (Foto: Roberto Higa/Arquivo)

Confira a galeria de imagens:

  • Antiga Estação Ferroviária de Campo Grande, hoje Armazém Cultural (Foto: Roberto Higa)
  • Foto de antigo trem do Pantanal no Armazém Cultural (Foto: Roberto Higa)
  • Diversos objetos da antiga estação (Foto: Roberto Higa)
  • Mapa com trajeto da ferrovia centenária (Foto: Roberto Higa)
  • Placa da reinauguração do Trem do Pantanal, abandonada em um canto do Armazém Cultural (Foto: Roberto Higa)
  • Antigos ferroviários; anos de dedicação ao trabalho (Foto: Roberto Higa)
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