Inconstitucionalidade da PEC da prisão em 2ª instância
1.) A decisão do STF, ao resgatar a possibilidade de prisão criminal somente após esgotamento das vias recursais (trânsito em julgado), trouxe inúmeros debates; na verdade, antes mesmo desse acórdão, juristas, advogados, membros do Ministério Público, jornalistas, a imprensa, enfim, todos passaram a discutir essa questão, certamente justificada pelos casos de corrupção que assolam o país, no bojo dos quais a operação Lava-Jato apurou e logrou obter a condenação de autoridades públicas.
Nesse cenário, o Congresso Nacional acaba de apresentar Proposta de Emenda Constitucional (PEC), no sentido de proporcionar, definitivamente, a prisão criminal dos acusados, a partir da condenação em segunda instância (tribunais), vindo de encontro à recente decisão da Suprema Corte, cujos membros, na sua maioria, propugnaram e decidiram em sentido inverso.
2.) Porém, a Emenda, se acaso for aprovada, no Congresso Nacional, não poderá retroagir: será aplicada nas situações futuras [conforme a ‘dimensão’ a ser discutida no Judiciário], devido ao princípio basilar do regime Democrático de Direito, segundo o qual as leis (e as emendas constitucionais) não podem retroagir [princípio geral de direito, irretroatividade], sobretudo, quando atingirem direitos e liberdades fundamentais [porque, normas dessa natureza não retroagem, em prejuízo dos acusados].
3.) Na verdade, o ponto nodal do problema encontra-se na inconstitucionalidade da proposta. Desde os primeiros encontros, em salas de aula, como aluno de Direito, professores ensinavam a existência, na CF, de um núcleo duro, irredutível a qualquer mudança jurídica, impeditivo de emendas constitucionais, que pudessem sobrepujar pontos nevrálgicos, estabelecidos pelo Poder Constituinte Originário (órgão que elaborou a CF).
Dessa maneira, no texto constitucional, há as chamadas cláusulas pétreas1, as quais impedem a proposta e votação de emendas constitucionais sobre questões específicas, elencadas no artigo 60, §4º, da CF, dentre as quais, ‘IV – os direitos e garantias individuais’. [art. 5º, CF].
Vale dizer, não pode haver proposta de emenda que possa atingir, remotamente, ou de forma indireta, ou oblíqua, direitos e garantias individuais. Isso porque, conforme o texto da CF, ‘não será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a abolir: IV – os direitos e garantias individuais’.
Sem dúvidas, a Constituição brasileira adotou o regime de rigidez constitucional, a fim de impossibilitar alterações bruscas no texto Constitucional, por simples leis, bem como estancar propostas de emendas constitucionais tendentes a abolir certas matérias contidas na própria Constituição. Trata-se de garantia política e jurídica, em prol dos direitos fundamentais.
Como dizia Geraldo Ataliba: “Efetivamente, os valores mais caros à cidadania não podiam deixar de ser a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade”2 [art.5º, “caput”,CF].
Valores esses irredutíveis a mudanças legislativas!!
4.) Modificações dessa ordem, embora louváveis na concepção de algumas autoridades, no plano jurídico, certamente, não parecem ser corretas. Alterações nos direitos e garantias individuais podem ocorrer se forem para beneficiar, e não prejudicar, os destinatários da norma constitucional; devem estender outros benefícios, ou situações; bens e valores contidos na Constituição. Nunca restringir esses dogmas jurídico-constitucionais; ou atingir as pessoas destinatárias das garantias contidas na Constituição. Caso contrário, onde ficaria o fundamento da República brasileira, a dignidade da pessoa humana (art.1º, “caput”, III, CF)?
5.) Contudo, a questão não se resume nisso. A rigidez constitucional [adotada na CF] está ligada, umbilicalmente, à possibilidade de o Judiciário apreciar a constitucionalidade de leis [e emendas constitucionais]. Magistrados têm função [dever] de observar a conformidade dos atos jurídicos ao texto constitucional, decretando-lhes a nulidade visceral, se acaso houver confronto entre referidas normas [princípio da superioridade constitucional].
6.) Então, o problema pode ser analisado sob prismas semelhantes e interligados. O primeiro, já visto (inconstitucionalidade sob o fundamento jurídico-constitucional no plano ‘estático’); o outro, numa perspectiva concreta, funcional, ou dinâmica, numa análise real e objetiva, atual e teleológica.
7.) Nesse aspecto, o STF, guardião máximo da Constituição, analisou e decidiu quanto à interpretação e aplicação ampliativa da norma de proteção da presunção da inocência da pessoas, atribuindo-lhe, a meu ver, ‘caráter não-restritivo’. Goste-se ou não da decisão da Corte, o fato é que a decisão proferida é ‘definitiva’ [até o momento].3
Assim, a PEC vem de encontro à decisão do STF, que, justamente, interpretou norma constitucional inviolável e imodificável pelo Parlamento. No plano concreto, pois, a PEC avilta a decisão do STF; afronta a decisão judicial e a norma constitucional interpretada por ela.
Possivelmente, essa situação jurídica possa ser traduzida no desvio de finalidade legislativa. Com efeito, por meio de emenda constitucional, pretende-se modificar recentíssima interpretação de norma constitucional garantidora da liberdade, realizada pelo STF, no exercício da função jurídico-constitucional de guardião da Constituição.
Conforme expõe o saudoso jurista e eminente professor, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello: “Ao declarar-se que o Poder Judiciário é o intérprete da Constituição, não se quer conceber que só ele é quem exerce essa função, e sim que é apenas quem a exerce em último recurso.”4
8.) Portanto, a PEC fere, ao menos, dois sustentáculos da República: (a) os direitos e garantias fundamentais [art. 5º, CF] e (b) a separação dos Poderes do Estado [Executivo, Legislativo e Judiciário, art.2º, CF], ambos considerados cláusulas pétreas expressas na Constituição Federal (art.60,§4º, III e IV). Dessa forma, a PEC não pode ser objeto de deliberação e discussão e, muito menos, ser aprovada, no Congresso Nacional.
1.As cláusulas pétreas podem ser explícitas, como no caso indicado; ou implícitas, isto é, decorrente dos princípios, bens, valores e fundamentos da Constituição.
2.República e Constituição, p.166, 2ªed., Atual. Rosolea Miranda Folgosi, Malheiros, 1998. Grifos não-originais. O mesmo jurista refere à impossibilidade de proposta que possa, remotamente, ou de forma indireta, atingir a Federação e a República (p.39).
3.Assim como já o fez, o STF pode rediscutir a questão, embora noutro momento, devido ao número de vezes que já se reuniu para analisá-la, ‘num vai-e-vem’ sem precedentes na história brasileira.
4.A Teoria das Constituições Rígidas, p.91, 2ª°d., José Bushatsky, Editor, 1980. Grifos não originais.
Heraldo Garcia Vitta. Advogado. Consultor Jurídico. Professor de Direito. Juiz Federal aposentado. Ex-magistrado do Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso do Sul. Mestre e Doutor em Direito do Estado (PUC-SP).