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Em Pauta

Os estupradores são tiranos desde o Império romano

Mário Sérgio Lorenzetto | 29/11/2017 06:21
Os estupradores são tiranos desde o Império romano

Roma era uma cidade que se preocupava demasiadamente com sua infraestrutura. Um sistema de esgoto - chamado "Cloaca Máxima" - era a obra considerada esplendida no século VI a.C.. Em um relato lúgubre, e gloriosamente fantástico, Plínio, o Velho, o extraordinário sábio romano, descreve como o povo da cidade estava tão exausto devido à construção dessa obra que muitos trabalhadores cometeram suicídio. O rei, em resposta, pregou os corpos dos suicidas em cruzes, na esperança de que a vergonha da crucificação demovesse outros de fazer o mesmo.
Mas não foi a exploração dos trabalhadores pobres que derrubou a monarquia romana, e sim, a violência sexual: o estupro de Lucrécia por um dos filhos do rei. Esse estupro é tão famoso como o "Rapto das Sabinas" que marca o início do período dos reis de Roma. É isso, o reinado romano inicia com estupros e termina também com esse tipo de ataque às mulheres. Mas, desde os gregos, havia a vinculação do auge e da queda das tiranias a crimes sexuais. O estupro de Lucrécia marcou um ponto de virada na politica, e sua moralidade foi assunto de debate. O tema tem sido retomado e reinterpretado na cultura ocidental. De Botticelli, passando por Ticiano e Shakespeare a ligação de estupro com tiranias é frequente. E agora retorna com força. Recomeçou nos Estados Unidos, passou pela Europa e chegou às terras brasileiras pelo condenação do jogador de futebol Robinho, um estuprador renitente, com dois casos em sua carreira de pequeno tirano.

Os estupradores são tiranos desde o Império romano

O caso de Lucrécia.

O estupro de Lucrécia é narrado com um grupo de jovens romanos formas de matar o tempo enquanto bebiam.Uma noite, bêbados, competiam para ver quem tinha a melhor esposa, quando um deles, Lúcio Colatino, sugeriu que deveriam simplesmente voltar para casa e inspecioná-las. Isso demonstraria, afirmou Lúcio, a superioridade de sua Lucrécia. O que de fato ficou provado. Enquanto todas as demais esposas foram encontradas divertindo-se em festas na ausência de seus maridos, Lucrécia fazia exatamente o que se esperava de uma esposa romana virtuosa - trabalhava em seu tear, em companhia de suas criadas. Ela então ofereceu um jantar a Lúcio e a seus convidados.
Mas a consequência foi terrível, pois, durante essa visita, diz a história, Sisto Tarquínio sentiu uma paixão violenta por Lucrécia, e poucas noites depois voltou à casa dela. Após ter sido gentilmente recebido, foi até o quarto de Lucrécia e exigiu-lhe que fizesse sexo com ele, ameaçando-a com uma faca. Quando viu que a ameaça de morte não a convencia a ceder, Tarquínio passou a explorar o medo dela de uma desonra: ameaçou matá-la e assassinar também um escravo para que ficasse a impressão de que havia sido flagrada na mais infame forma de adultério. Diante disso, Lucrécia cedeu. Em seguida, chamou o marido e o pai e contou-lhes o sucedido. Em seguida se matou.

Os estupradores são tiranos desde o Império romano

A formação da cultura moral ocidental contra o estupro.

Os estupros até esse episódio eram comuns. A partir de então passou para a história como uma imagem extraordinariamente poderosa na cultura moral do Ocidente. Para muitos, representou um momento definidor da virtude feminina. Lucrécia pagou voluntariamente com a própria vida por ter perdido a sua "pudicitia" - a sua "castidade", a sua "fidelidade", que, por parte da mulher ao menos, definia o relacionamento entre os casais. Essa história ensejará uma imensa série de debates - pró e contra a "pudicitia", ou a favor e contra o estupro. Muitas dúvidas sempre foram colocadas - e continuam aparecendo. Em verdade, a estuprada passa por dois momentos de violência e tirania: no ato sexual e no julgamento. No inicio do século V d.C., quase mil anos depois de Lucrécia, santo Agostinho, que era versado em clássicos romanos, ponderava se Lucrécia havia sido estuprada de fato: afinal, ela não acabou consentindo? Não é difícil detectar aqui versões de algumas discussões acaloradas em pleno século XXI.
Ao mesmo tempo, o estupro de Lucrécia foi visto como um momento fundamentalmente político, pois a história carrega diretamente a expulsão dos reis e o início da República. Observem, a história da República, iniciada nessa Roma, nasce de um estupro. Os Tarquínios não só perderam o trono como foram expulsos de Roma.

Os estupradores são tiranos desde o Império romano

O nascimento da liberdade.

O final dessa monarquia marcou também o nascimento da liberdade e da República livre de Roma. Pelo resto da história romana, "rei", ou "rex", foi um termo depreciativo. Houve vários casos nos séculos que se seguiram em que a carreira política de um homem terminou rapidamente a partir do momento em que foi acusado de querer tornar-se rei.
A queda dos Tarquínios representou um novo início para Roma. A cidade teve um "recomeço", agora como República (ou em latim "res publica", literalmente "coisa pública"). Uma poderosa tradição insistia em que o templo de Júpiter no Capitólio havia sido consagrado à República em seu primeiro ano. Por séculos manteve-se a tradição de martelar um prego no batente da porta do templo, não só para marcar o tempo republicano, mas também para vincular fisicamente esse tempo à própria estrutura física do templo.
Nascia uma nova modalidade de governo. Teve início o tempo dos cônsules e senadores. Seriam as autoridades supremas e definidoras de uma República. Presidiam a política doméstica da cidade e comandavam os soldos de guerra. Nunca houve em Roma qualquer separação formal entre os papéis militares e civis. Uma tradição que só Israel preservou até os dias de hoje - todos são civis e militares, ao mesmo tempo. Esses novos mandatários, ao contrário dos reis, eram escolhidos pelo povo. Tinham mandato de apenas um ano e uma de suas obrigações era presidir a eleição de seus sucessores. O cargo era dividido com outro cônsul e, exceto em emergências - doença e morte - o poder sempre seria compartilhado. O período de poder de dois cônsules também estava ligado ao calendário. O que chamamos, por exemplo, de 63 a.C., era para eles, "o consulado de Marco Túlio Cícero e Caio Antonio Hibrida". A República, em outras palavras, não era apenas um sistema político. Era um complexo conjunto de inter-relações entre política, tempo, geografia e paisagem urbana.
A Atenas do século V a.C. legou ao mundo a ideia de democracia. A Roma da mesma época nos legou a ideia de liberdade vivendo em uma República.

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