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Artes

A vida que as pessoas tramam entre os fios que tecem as tardes

Marília Adrien de Castro, Dulce Martins e Lúcia Carolina* | 31/01/2021 11:13
Ilustrção feita por Guto Naveira.
Ilustrção feita por Guto Naveira.

— Hanny, vem aqui, vem, Hanny, perto do portão, eu quero mostrar uma coisa.

— Obaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa! Nós vamos brincar?! Nós vamos brincar lá fora?! Nós vamos brincar de correr?! Posso procurar aquele osso que eu enterrei?! Por que você não está de tênis?! Nós vamos correr?!

— Hanny, sossega. Você está vendo aquele senhor que vai sozinho pela rua?

— Não. Estou vendo um cão, leve e ágil, que vai sozinho pela rua. Parece muito concentrado em algo que logo estará à sua frente, determinado a chegar ao lugar aonde vai.

— Hanny, aquele senhor que vai com o cão tem muito pouco, mas muito pouco mesmo, a vida não facilitou para ele: nasceu em uma família pobre e numerosa, seu pai abandonou o lar e nunca compareceu nos cuidados com os filhos, ele teve de parar de estudar ainda criança para ajudar a mãe, tudo lhe faltou, menos a noção de que se há algo que todos devem uns aos outros é o afeto, a atenção, a empatia.

— Ah... agora eu vi, ele está na frente do cachorrinho, tão magro quanto, mas menos leve e ágil. Nós, cães, temos uma nobreza, diz aí, Dulce, não temos?

— (risos).

— O senhor vai meio curvado, mas olha à frente tão assente quanto seu amigo. Aquele é o humano do cão que o segue, Dulce?

— Sim, era isso que eu queria mostrar, veja como o cachorro está bem, talvez até melhor do que seu humano. Como você reparou, Hanny, a magreza daquele senhor parece deixá-lo lento, ao contrário, a magreza do cãozinho deixa-o leve e ágil. Mas veja como o cão está bem cuidado, seu pelo é saudável, ele está limpo, não há ferimentos em seu corpo, desperto, seu passo é saltitante, animado, orelhas alertas, a respiração acompanha o ritmo de seus saltos. Aquele senhor tem muito pouco para si e menos ainda para oferecer aos outros, mas veja, ele é solidário, cuidadoso e faz o que deve para manter seu cãozinho bem. Sabe por que, Hanny?

— Dulce, assim você me faz chorar, estas histórias...

— Eles cativam um ao outro num laço de afeto e companheirismo, assim, cuidam um do outro: o cão é a companhia que faltava na solidão do homem; o humano é o trato que um cãozinho não pode providenciar para si: comida saudável, água limpa, higiene, proteção...

“CÁIN!!!!”

“TOTÓ!”

“SAI DAQUI, CACHORRO ABUSADO!!! Ô, Ô, Ô!!!! TÁ PENSANDO QUE ESTE BICHINHO NÃO TEM DONO?!”

“RRRRRRRRRRR, AU!!!”

“CÁIN!!!”

— Hanny, volta aqui! Hanny! Senhor, segura essa poodle!

— Ô, bichinho bonitinho...

— Ah, obrigada, senhor! Ela viu seu cachorro quase ser agredido por aquele outro, enorme, que apareceu do nada! Que susto! Hanny disparou para ajudar seu cão a enfrentar o cachorro valentão (risos).

— (risos) Ah, que bichinho bacana, já é nosso amigo, agora, pode contar com a gente para o que der e vier!

Dulce e aquele outro humano de cachorros, por meio do olhar, que é o faro das pessoas, se reconheceram no amor aos animais.

— Hanny adorou ver a amizade do senhor com seu cãozinho. E ele é muito bem cuidado, viu? Parabéns. Não sei se o senhor se lembra de mim, moro logo ali, o senhor já fez alguns consertos na minha casa, mas antes, não tinha um cachorrinho.

— Ah, eu me lembro da senhora... e acho que me lembro da Hanny, ela era um cachorrinho muito do bonzinho, parecia uma pessoa na casa, sentada no sofá com educação, as patinhas da frente cruzadas... Muito bem, Hanny, não mudou nada na educação e na simpatia! (Afaga Hanny).

— Então o nome do seu é Totó! Podemos dizer que Totó é o João dos cães, um clássico!

— Um clássico ou o nome mais comum (risos)?

— Um nome sóbrio, simples, mais elegante do que comum.

— Obrigada. Olha, sobre aquele cachorro que quase atacou Totó, acho que ele veio da esquina, foi muito rápido, mas não fica zangada com ele, não, o pobre do bicho não teve quem o cuidasse, quem ensinasse a gostar das pessoas, dos animais, das plantas, muita coisa deve ter faltado a ele desde quando era um filhotinho, e certamente não tinha alguém disposto a dividir com ele a única coisa que todo mundo pode ter ao alcance do coração: o amor.

— O senhor está certo, Hanny e eu não ficaremos com raiva dele, o senhor tem razão, aquele cachorro não conhece outro modo de reagir à presença dos outros a não ser a agressão, deve ter passado por cada uma...

— Uma vida pode ser carente de muita coisa, só não pode faltar ser importante para outras vidas e sentir a importância que as outras vidas têm... Como é sua graça? De Hanny já sei o nome...

— Eu sou Dulce. E o senhor?

— João. João da Silva. O pai do Totó... Totó da Silva.

— Seu João, se aquele cão que tentou atacar Totó aparecer de novo, vou chamar o senhor e vamos combinar de tentar encontrar uma casa para ele, o que o senhor acha?

— Está combinado. Vamos ao menos tentar, não sei se um cão com aquela agressão se acostuma morando com alguém, tendo um humano, mas tentar nunca é em vão.

— Então estamos combinados. Foi um prazer conhecê-los. Tchau, Seu João! Tchau, Totó!

Tecendo um fio que cresce para os lados opostos, seguem os pares Dulce e Hanny, João e Totó, iguais no afeto, diferentes em todo o resto, costurando uma trama da rede que liga todos os seres que estão vivos ao mesmo tempo neste mundo.

O sol se põe. Somando-se à luz da rua, se acendem as luzes das casas e dos comércios. Passam crianças e adolescentes em grupos voltando dos colégios, alguns destes grupos seguidos por cães que esperam seus donos desde que finda a tarde.

*Marília Adrien de Castro, Dulce Martins e Lúcia Carolina escreveram juntas a obra literária "Hanny, Amor Eterno". São contos de uma cachorrinha que vive entre humanos e sonha com os humanos. A proposta, segundo elas, é que os homens se conscientizem mais sobre as questões animais e principalmente como os cães ocupam um espaço muito especial de amor e muitas vezes como um membro da família. As histórias de Hanny são embasadas na vida real ela existiu e até hoje vive no coração da Dulce e dos amigos.

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