De Barack Obama a Janes Joplin, 2020 foi marcado pelas biografias
Ainda, sobre presidente da república, de apresentadora brasileira e cineasta americano
Barack Obama relembra que Donald Trump disse, certa vez, que um ex-ativista radical deveria ser o autor de "Sonhos do Meu Pai", que Obama publicou em 2008, "porque o livro era bom demais para ter sido escrito por alguém com meu calibre intelectual". Já o cineasta Woody Allen não perdoa sua ex-mulher, a atriz Mia Farrow, que o acusou de abuso sexual de seus filhos: além de mentalmente instável, ela exibe "carinha de sonsa". No Brasil, Xuxa contou como foi abusada sexualmente quando ainda era uma menina e Nelson Motta revela um momento hilariante quando um dos bandidos que invadiram sua casa, ao notar sua coleção de discos, perguntou se tinha algum do Phil Collins.
Biografias e autobiografias de figuras renomadas, escritas com brilhantismo e perspicácia, dominaram o mercado editorial brasileiro em 2020 como há muito não acontecia. Figuras polêmicas, como o ex-presidente João Baptista Figueiredo, que preferia o cheiro de cavalos ao do povo, ganharam uma importante revisão histórica em "Me Esqueçam – Figueiredo: A Biografia de uma Presidência" (Record). Assim, Bernardo Braga Pasqualette traça um minucioso perfil do último general que presidiu o Brasil, entre 1979 e 1985. "É covardia esquecê-lo, a despeito de qualquer vontade sua. Fez muito em um período turbulento. De bom e de ruim", escreve o autor.
Os bons resultados desse ano, no entanto, seguem um movimento mais antigo. "Minha opinião é que essas vendas vêm crescendo já há um bom tempo", atesta Luiz Schwarcz, publisher do Grupo Companhia das Letras. "E não creio que a tentação à bisbilhotice das mídias sociais se relacione com o crescimento de literatura de não ficção séria. Ela cobre um espaço que mistura os leitores de ficção e não ficção juntos. Pela qualidade narrativa e de pesquisa. E os livros excepcionais geram mais mercado. Em geral, sou favorável a encontrar os motivos nos livros que saem e em suas qualidades e não em tendências gerais".
Justamente para quem tem experiência na prática, como os biógrafos Ruy Castro e Lira Neto, a observação é válida. "Mais que um fenômeno recente e instantâneo, penso tratar-se de um processo evolutivo", comenta Lira, autor de importantes biografias como a de Getúlio Vargas, Castello Branco e Maysa. "Desde a década de 1980, quando mestres como Fernando Morais e Ruy Castro modernizaram o gênero no Brasil, afastando-se então da ideia de monumentalizar 'grandes homens' e passando a revelar as imperfeições humanas dos biografados, o fazer biográfico tem evoluído de maneira considerável no País. Constata-se um amadurecimento progressivo no trabalho dos biógrafos, que hoje parecem mais conscientes da necessidade de rigores cada vez maiores no trato e na explicitação de suas fontes de investigação, por exemplo".
Ainda segundo Lira, certo impressionismo, a tentação pelo meramente anedótico e a firula verbal cederam lugar a contextualizações mais adensadas. "O que não significa a perda do frescor narrativo ou a burocratização do estilo. Ao contrário, o grande desafio passou a ser articular um mergulho mais metódico e responsável nas fontes documentais com a fluência, a precisão, o sabor e a elegância do texto".
Exemplos não faltam, como o já citado trabalho de Pasqualette sobre o general João Figueiredo e o trabalho de fôlego de Karla Monteiro em "Samuel Wainer – O Homem que Estava Lá" (Companhia das Letras), minucioso relato sobre o homem que, se de um lado revolucionou o jornalismo brasileiro, de outro era capaz de atropelar conceitos éticos para conseguir o que ambicionava.
"Uma narrativa biográfica só é válida quando revela, por trás da epiderme do texto, um vigoroso trabalho de investigação, uma estrutura sólida, um arcabouço bem definido", e continua Lira Net: "o detalhe pelo detalhe, por exemplo, perdeu o sentido. A minudência tem que desvelar e propor significados. Também não se trata mais de buscar a suposta 'verdade dos fatos', mas de interrogar como e por que este ou aquele episódio passou à história desta ou daquela maneira. Nesse processo, o biógrafo não pode ter a pretensão onisciente de 'saber tudo tal e qual aconteceu'. Ao contrário, deve ter a humildade e a consciência diante do caráter necessariamente falhado na reconstituição de um fato, inclusive deixando evidente, ao leitor, tanto suas dúvidas quanto as inevitáveis lacunas documentais".
É o que se observa, por exemplo, em "Alexander Hamilton" (Intrínseca), monumental biografia do primeiro Secretário do Tesouro dos Estados Unidos (entre 1789 e 1795), considerado por muitos o mais progressista dos pais fundadores daquela nação – o biógrafo Ron Chernow traça um perfil quase completo de um político de rara habilidade, mas também de um homem marcado por dilemas e insights, e cujas determinadas amizades na adolescência insinuam amores homossexuais, algo que Chernow apenas suspeita, pois provas definitivas, como cartas, desapareceram ou foram rasuradas.
Quando isso não acontece, o biógrafo pode comprometer a própria obra. A americana Holly George-Warren é autora de "Janis Joplin – Sua Vida, Sua Música" (Seoman) que, no Brasil, ganhou um imprudente subtítulo: "A Biografia Definitiva da Mulher Mais Influente da História do Rock". Tal afirmação cai por terra quando o texto dedica poucas páginas à passagem de Joplin pelo Brasil, país pelo qual se apaixonou e onde arrumou namorados, como o roqueiro Sergei, dados não encontrados na biografia.
Falha que se espera encontrar nos livros sobre políticos, desejosos de ocultar determinadas passagens de sua trajetória. Quando isso não acontece, a obra ganha a estatura devida. Em "Uma Terra Prometida" (Companhia das Letras), primeiro volume de suas memórias, o ex-presidente americano Barack Obama descreve em detalhes sua formação política e momentos marcantes de seu primeiro mandato, como as dificuldades para aprovar sua lei de assistência à saúde e momentos de tensão, quando bate de frente com generais sobre a estratégia militar americana no Afeganistão.
Também é curiosa a descrição de seu relacionamento com Michelle, enfurecida com a ausência do marido na criação das filhas. Em 2004, por exemplo, quando ele concorreu ao Senado Federal, Michelle foi taxativa: "que seja a última vez. Mas não conte comigo na campanha. Na verdade, é melhor não contar nem com meu voto".
(As informações são do jornal O Estado de S. Paulo)