Há 55 anos, fazer teatro ou dança era conviver com a censura no palco
Atores e bailarinos tinham roteiros mutilados antes das apresentações
No Brasil, durante os 21 anos da ditadura militar que vigorou no País, entre 1964 e 1985, atores e bailarinos viram textos dramatúrgicos e cenas de danças mutiladas pela burrice da censura. Aos 70 anos, ator e bailarino Jair Damasceno lembra como foi ser um artista que, apesar de perseguido pelo regime, cumpriu papel de resistência cultural à repressão e à falta de liberdade.
Na memória, papéis com textos inteiramente rabiscados, apagados, recortados ou picotados pelo regime chegavam às mãos dos diretores. Quem ousasse subir ao palco com textos fora de ordem sofria as consequências, conhecidas pela História como prisões, agressões e torturas.
“Não tínhamos nenhuma liberdade e funcionava da seguinte maneira: começávamos o ensaio enquanto o texto da peça era enviado em um envelope para Brasília. Naquele tempo, esperávamos dias, meses e até um ano para receber o texto de volta porque a censura era centralizada em Brasília”.
Liberados pela censura com cortes, nenhum texto voltava igual para as mãos dos dramaturgos. “Por diversas vezes tivemos o texto vetado, o que significava que não poderíamos apresentar o espetáculo. Em outros momentos, vinham rabiscados e com observações sobre trechos que atentavam ao regime. Outros textos vinham mutilados”, descreve.
Poucas companhias de teatro existiam por aqui na época. Jair fazia parte do grupo Gutac que, por diversas vezes, viu personagens e cenas ficarem de fora. “A peça era liberada com cortes das coisas mais bobas do mundo”, diz. “Lembro-me que participei de um espetáculo chamado ‘Os Profanos ou Quem se Atreve’ com texto de Américo Calheiros, que teve personagens mutilados pela censura”.
Depois do texto “pronto” o grupo tinha mais uma tarefa a cumprir. Atores se posicionavam no Teatro Glauce Rocha para uma apresentação exclusiva a um censor. “Nós fazíamos uma apresentação só para um censor, que era um policial federal, com o texto vindo de Brasília nas mãos, para ver se a gente não estava desobedecendo às ordens”.
Gutac, assim como outros grupos de artistas naquele tempo, era considerado perigoso. “A gente sabia que possivelmente eles tinham nossos nomes porque nos consideravam agitadores e perigosos. A mesma coisa acontecia nos espetáculos de dança”.
Com 47 anos de vida no teatro e 45 na da dança, Jair Damasceno afirma que foi um dos homens estreantes no balé em Campo Grande. À época, quando começou a dançar, os coreógrafos precisavam encaminhar para Brasília uma sinopse sobre as cenas de dança. “Também não podíamos estrear sem fazer uma apresentação para o censor”.
Em uma cena comum da dança a dois, em que o bailarino passava por cima de uma bailarina, Jair foi censurado. “Ele mandou tirar aquilo da dança porque simbolizava um ato sexual”.
Hoje, com a celebração do golpe de 64 prevista pelo CMO (Comando Militar do Oeste) com aval da presidência Jair não tem o que comemorar. “Esses foram os casos de Campo Grande, mas existem muitos outros em que artistas tiveram suas famílias arrasadas apenas porque estavam fazendo cultura. Então, neste dia, é indigno alguém dizer que não houve ditadura e é indigno dizer que tudo aquilo estava certo”.
O ator diz que tenta exercer a liberdade apesar de qualquer censura porque enxerga a cultura brasileira e em qualquer lugar do mundo como parâmetro. “A cultura mete medo porque ela é forte, poderosa e, não necessariamente, precisa de dinheiro para sobreviver, porque quem faz parte da cultura são pessoas pensantes. Então se um regime tem medo da cultura ele é não é democrático, isso é um parâmetro inegável. Basta observar a cultura e a educação do país, se elas tiverem sendo censuradas, isso significa que a nossa democracia está em risco”.
Amor pela arte – Ainda na ditadura, sua maior inspiração para seguir em frente com a arte foram os pais. Filho de militar, o pai tocava violão enquanto a mãe cantava e juntos riam de Jair subindo no banquinho para fazer poesias. “Para ele era normal a arte. Hoje, ele tem 99 anos, mas assim que houve o golpe ele se aposentou e em 1966 alguém disse para ele que era bom viver na região Centro Oeste”.
Jair nasceu no interior do Amazonas, mas considera-se um sul-mato-grossense nato. “Sou um ex amazonense apaixonado por Mato Grosso do Sul. E volto a dizer: pergunte como é a cultura do seu país e você sabe qual é a educação desse povo”, finaliza.
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