Manoel de Barros, nosso poeta das novas palavras, manda notícias
Manoel de Barros vive em uma casa do centro de Campo Grande (MS) com a mulher, Stella. Aos 96 anos (já conta os 97) considera “um privilégio” ter chegado a esta altura, sem nunca precisar agradar ou bajular ninguém.
Por conta da idade, o Poeta diminuiu muito a sua produção. Os anos trouxeram ainda outros dissabores, como uma maior dificuldade para andar e a lentidão para escrever, agora, segundo ele, já em ritmo “baticum gererê”.
O poeta faz poesia, a lápis (ou com uma Bic), usando a mão esquerda possui alguns dedos “adormecidos”. Mantém sua letra miúda e justifica: “Não sei de máquina. E ignoro computador. Cheguei antes”.
Em seu escritório, continua a reunir seus tesouros: as fotos do pai João Wenceslau e da mãe Alice, uma pequena biblioteca com os livros preferidos, dicionários, a escrivaninha , vários pequenos cadernos com anotações, tocos de lápis etc, onde cria: relendo e escrevendo, ouvindo música clássica ou fazendo sua contemplação em sua lida diária.
Fechado pro mundo - Sempre foram frequentes minhas visitas ao Manoel, nos últimos 30 anos. Na mais recente, desfiz, enfim, a preocupação de uma outra ida à casa dele, quando não consegui vê-lo e fui recebido apenas pela filha Martha, também minha amiga. Era só uma “constipação”.
Manoel de Barros mantém a vivacidade de seus pequenos olhos pretos. O sorriso inesquecível do Poeta e a cordialidade mineira de Stella, sua mulher há mais de 60 anos, continuam os mesmos.
Degustamos o pão de queijo oferecido por Stella, acompanhado do seu saboroso cafezinho.
O Poeta mantém o hábito de antes do almoço tomar sua dose diária de destilado, com a única diferença de ter trocado as talagadas da pinga mineira por uísque com água de coco, orientação, segundo ele, de seu médico. O artista tem comido pouco. Gosta de ovo, arroz, carne, feijão, acompanhados sempre de fruta.
Fazem parte de sua rotina sete netos, cinco bisnetos, duas funcionárias que se revezam, a fisioterapeuta domiciliar que ajuda na reabilitação do filho Pedro (que busca recuperar de um coma pós um AVC).
Martha, que mora no Rio, também vê sempre os pais, cercados que estão pela lembrança do outro filho, João, morto em acidente de avião em 2008.
Manoel de Barros tem saído raramente de casa e só permite abrir as portas de sua residência para os familiares. Se comove muito quando revê algum amigo. Pessoa de uma delicadeza natural, estremece emocionalmente quando admiradores se aproximam. Houve um tempo em que atendia todo mundo, mas já não consegue.
O moço filho de fazendeiro, que estudou pintura e cinema em Nova York, é hoje o ancião que mais vende poesia no Brasil. Os livros dele também vendem bem na Europa, onde tem seguidores principalmente em Portugal. Por essas e outras é que o poeta fica cada vez mais fechado para o mundo. “Ele nasceu sem arrebentar a bolsa d água”, diz Stella, para explicar a estrela original do pantaneiro/cuiabano. E, é certo, ganhou “o dom” de Deus.
Nunca se relê - O Poeta é um tímido que vive de palavra. Manoel de Barros vive em estado de sensibilidade pura. Não relê os livros que escreveu. E somente Stella tem o privilégio de ver os originais, antes que o Poeta os mande à editora. Diante da consagração e da condição dos iletrados pós-modernos, sua poesia é nossa mais absoluta demonstração de independência e soberania e de esperança nesses tempos de sociedade digital.
Entre os assuntos recorrentes que aguçam a curiosidade de seus leitores, estão essas perguntas, que arquivei junto com as respostas curtas do Poeta: “Autores preferidos? Rimbaud é meu mestre. Aqui no Brasil, Guimarães Rosa, Padre Vieira. Novos autores? Há dez anos eu só releio. O que é poesia? Poesia é trabalho com palavras. Novo livro? Tento, com pouca força, outro livro de prosa poética. A posteridade? Sinceramente penso. Mas tenho todas as dúvidas. A timidez? Sou tímido. Um gole de vinho me tira a timidez. Fala do Poeta. Sou linguagem”.
‘Tudo o que eu não invento é falso’, diz - Manoel de Barros: ‘há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira’.
Tudo o que Manoel de Barros não inventa, “é falso”. Quem leu o poeta, sabe. Foi no vento desse vôo “fora das asas” que ele já atravessou 96 verões, invernos, outonos e primaveras. Está a caminho dos 97 anos, que vai completar em 19 de Dezembro. O poeta nascido em 1916, à beira do rio Cuiabá, não faz planos. Nem está assombrado pela idéia da morte. Caminha pela via única da poesia, movido pelas novas palavras.
E o que é esta poesia tão poderosa? Pergunta-se ao poeta. Avesso a discursos, teorias, pompas, fotos, ele prefere se isolar a responder. Não vai dizer que não pensa nem pensar o que não diz.
Ele sabe que a resposta está no que se escreve. No caso dele, a obra é o homem. É maior que o homem.
A poesia faz o artista pairar acima da rotina prosaica. Mas é dessa rotina que Manoel de Barros extrai os sentimentos, as intuições e traduz o que os olhos não vêem. Leu muito Guimarães Rosa. Adora palavras novas. Sonoridades que saem de algum ouvido extra que Deus lhe deu. Uma audição conectada com canais insuspeitos,franqueados a poucos. Ele nunca pensou longamente em Antoine de Saint-Exupery, mas sabe. O essencial é invisível.
Quando contempla, intui. E um gênio lírico em forma de anjo e aura de luz, ilumina seus textos, feitos com toco de lápis ou caneta bic. “O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis”, diz ele. Todos morrerão, o poeta morrerá.
Mas a poesia, ah! Essa tem parte com Deus. Sobreviverá aos tempos, aos desenganos, às doenças, aos limites físicos, á impossibilidade humana.
(*) Bosco Martins escreveu para o jornal Correio Braziliense