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Comportamento

Idade de ex ou número de filhos importam em casos de feminicídio?

Coletivo Margarida Marques quer levar a imprensa a refletir sobre a construção das notícias nos casos de mulheres assassinadas

Paula Maciulevicius Brasil | 13/07/2020 07:39
Imagem que circulou nas redes em 2017, em uma das manifestações pela morte de Mayara Amaral que ocorreu em todo País.
Imagem que circulou nas redes em 2017, em uma das manifestações pela morte de Mayara Amaral que ocorreu em todo País.

O coletivo, que nasceu para acolher vítimas de assédio na UFMS, tem feito suas ideias ultrapassar os portões da universidade para chegar às redações jornalísticas, buscando influenciar como são construídas as notícias sobre casos de feminicídio em Mato Grosso do Sul. Formado por mulheres acadêmicas, professoras e jornalistas, o Coletivo Margarida Marques quer levar a imprensa a refletir sobre a construção das notícias nos casos de mulheres assassinadas pelo só fato de serem mulheres.

Juntas, as mulheres que formam o coletivo divulgaram uma carta aberta (na íntegra, ao fim do texto) mostrando preocupação em como as vítimas de feminicídio, estupro e assédio são retratadas nas notícias e como, a partir dessa imagem, o jornalismo possibilita a legitimação de determinados discursos.

A carta cita, entre outros, o caso de Carla Santana Magalhães - apesar de as linhas de investigação da Polícia irem além do feminicídio, não sendo descartado até se tratar de um assassinato praticado pelo "tribunal do crime" -, sequestrada no dia 30 de junho. É criticado o fato de que, até o corpo ser encontrado, fatores como seu relacionamento anterior ganharam relevância na imprensa. "Como se fosse possível justificar tremenda violência pela idade de seu ex-namorado, ou pela quantidade de filhos da vítima", aponta o coletivo no documento.

Carta cita caso de Carla como exemplo (embora haja outras linhas de investigação da Polícia) e levanta até a escolha das fotos feitas pela imprensa da vítima nas narrativas.
Carta cita caso de Carla como exemplo (embora haja outras linhas de investigação da Polícia) e levanta até a escolha das fotos feitas pela imprensa da vítima nas narrativas.

"Entendemos que a dinâmica de trabalho muitas vezes não permite que muitos questionamentos sejam feitos quanto à abordagem durante o processo de escrita, que as informações são obtidas por meio de sistemas das próprias polícias e o contato com outras possíveis fontes se torna inviável. No entanto, é imprescindível que haja criticidade na produção de notícias e mudança de atitude, para não perpetuarmos estereótipos machistas e, assim, combatermos as violências contra a mulher de maneira efetiva", enfatiza o coletivo na carta.

O coletivo tem hoje 35 mulheres, estudantes e profissionais formadas pela UFMS em Jornalismo e também em Audiovisual. O nome Margarida Maques é uma homenagem à jornalista que ajudou a fundar o curso na UFMS, a primeira mulher a presidir o Sindicato dos Jornalistas, além de ter sido também presidente da Fertel (Fundação Estadual Jornalista Luiz Chagas de Rádio e Televisão Educativa de Mato Grosso do Sul), atuando tanto na TVE, atual TV Brasil Pantanal, e na rádio 104 FM. Margarida morreu em 2012, de complicações cardiorrespiratórias.

A ideia inicial do coletivo era a de carregar a bandeira de acolhimento às vítimas de assédio. "Mas agora com toda essa movimentação do caso Carla, a gente percebeu que também precisamos falar sobre gênero e pautas com perspectivas de gênero na imprensa sul-mato-grossense. E também trazer para o dia a dia do jornalista esse debate de como tratar de forma digna, eficiente e responsável as histórias de mulheres vítimas da violência de gênero", explica uma das integrantes do coletivo, Rafaela Flôr.

Coletivo leva o nome de jornalista Margarida Marques, que ajudou a fundar o curso e foi a primeira mulher a ser presidente do sindicato.
Coletivo leva o nome de jornalista Margarida Marques, que ajudou a fundar o curso e foi a primeira mulher a ser presidente do sindicato.

Mestre em comunicação, com a dissertação intitulada "Midialivrismo e feminismos: análise da cobertura jornalística com perspectiva de gênero da Revista Azmina", Letícia Ávila fala que depois da carta endereçada à imprensa, o coletivo quer desenvolver um manual humanizado de cobertura jornalística sobre gênero. "Por exemplo, a foto que é escolhida para representar a imagem da vítima de um crime envolvendo violência sexual, ser a foto da mulher com muita maquiagem, ou em determinado ângulo ou determinada roupa, constituem formas capciosas de passar essa mensagem, e nesse sentido, podem até mesmo desumanizar a vítima ou sexualizá-la", levanta Letícia.

Outro ponto argumentado pela jornalista é a a própria utilização do boletim de ocorrência da maneira como foi escrito. "Muitas vezes é carregado de preconceitos e machismo porque também foi feita por pessoas, não é? Mesmo sendo um documento 'oficial'. Nossa iniciativa ao contatar os profissionais não foi para 'corrigir' ninguém, mas provocar essa reflexão para a melhor cobertura pelo respeito à memória daquela mulher e de sua família", afirma.

Professora do curso de Jornalismo, Katarini Miguel pondera, como pesquisadora, que é muito difícil estabelecer regras dentro das redações por uma série de tensionamentos relacionados ao espaço editorial, mas levanta pontos que podem ser evitados. "Focar muito mais na valorização e na história do homem do que da mulher. É recorrente isso no jornalismo, de dizer quem é esse homem, onde ele trabalhava, o que fazia. Em compensação, na mulher é muito frisado a conduta moral e o comportamento dela", avalia.

A professora também contextualiza que as questões são tão enraizadas que acabamos reproduzindo sem sequer perceber. "Porque o jornalismo precisa de fatos objetivos, e às vezes não entende que só por ser mulher ela acaba sendo assassinada. Então na tentativa de encontrar respostas objetivas, se coloca número de filhos, se ela estava tendo um caso ou não como se o comportamento dela pudesse ter evitado, mas não, esta mulher não foi morta pelo comportamento, ela foi morta por ser mulher".

Parte das integrantes do Coletivo Margarida Marques.
Parte das integrantes do Coletivo Margarida Marques.

Defensora Pública do Estado de Mato Grosso do Sul e coordenadora do Nudem (Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher), Thais Dominato afirma que, de fato, a imprensa tem um papel de muita responsabilidade nas coberturas de feminicídio. "A imprensa pode revitimizar aquela vítima, aquela mulher e pode contribuir para perpetuar a violência contra todas as mulheres, dependendo da forma como é divulgado. O cuidado que precisa ser tomado é para não reforçar o estereótipo, conceitos machistas e culpabilização da vítima", explica a defensora.

Thais usa como exemplo manchetes que exploram a vida sexual de mulheres como se isso pudesse medir o grau de culpa. "Garota de programa foi morta ou ex-namorada foi morta saindo de motel. São fatos que vem para reforçar o conceito machista e culpabilizar como se a vítima pudesse ser morta porque estava num motel", pontua.

A defensora traça, ainda, um paralelo: tanto na imprensa quanto num julgamento de violência doméstica, certos questionamentos deveriam ficar de fora. "Quantas vezes no julgamento tem advogado perguntando para a vítima: 'ah, mas você traiu?' O que isso interessa para a juíza? Não vai mudar em nada o julgamento naquele caso e perguntas desse tipo têm sido indeferidas", conta.

Abaixo, a carta do coletivo na íntegra:

Caros colegas jornalistas,

Enquanto comunicadoras e comunicadores temos o compromisso de nos responsabilizarmos pelo melhor tratamento direcionado às nossas fontes e personagens. Com o intuito de colaborarmos para um jornalismo mais humanizado e comprometido, o Coletivo de Mulheres Margarida Marques, composto por alunas, egressas e professoras do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, se preocupa em como as vítimas de feminicídio, estupro, assédio e afins e em como estão sendo tratadas e construídas as narrativas jornalísticas desses casos. Por isso, nos manifestamos por meio desta carta para debatermos sobre a melhor maneira de noticiar violências contra a mulher.

Mato Grosso do Sul possui o terceiro maior índice de feminicídio do Brasil de acordo com a Secretaria de Justiça e Segurança Pública, e ocupa o segundo lugar no ranking do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019 onde mais há denúncias de violência sexual. Além disso, tem demonstrado possuir uma imprensa pouco combativa às violências (físicas e morais) contra a mulher.

O feminicídio é o homicídio praticado contra a mulher em decorrência do fato de ela ser mulher (misoginia e menosprezo pela condição feminina ou discriminação de gênero, fatores que também podem envolver violência sexual) ou em decorrência de violência doméstica.

O Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul fez um compilado de dados sobre os casos de feminicídio no estado, e apontou que em 2019 foram registradas 96 denúncias de feminicídio, dentre as quais 31% foram crimes consumados. Este ano, só nos cinco primeiros meses 15 mulheres foram vítimas dessa violência.

Por meio da narrativa e da construção das notícias, do que se torna relevante para contar as histórias, o jornalismo possibilita a legitimação de discursos. Assim como outras instituições sociais, toda vez que se diz neutro e imparcial, acaba por manter relações e hierarquias de poder que favorecem a desigualdade de gênero e, consequentemente, as violências causadas por ela. 

Percebemos que as pautas relacionadas às mulheres são apresentadas como assuntos duvidosos. Esta semana, Carla Santana de Magalhães foi sequestrada na terça-feira, 30 de junho, e os veículos de comunicação do estado trataram a situação como "desaparecimento" até que seu corpo fosse encontrado na sexta-feira, 3 de julho. Desde então, fatores como seu relacionamento anterior ganharam relevância na imprensa sul-mato-grossense. Como se fosse possível justificar tremenda violência pela idade de seu ex-namorado, ou pela quantidade de filhos da vítima.

Vale lembrar que manuais que indicam a boas práticas jornalísticas para os profissionais, como o Manual de Jornalismo Humanizado produzido pela Think Olga, sugerem que o ideal nestas situações é a abstenção "de informações sobre a vida pregressa [da vítima], em geral expostas para desmerecer sua conduta e, de alguma forma, colocar sobre ela algum merecimento sobre o que aconteceu".

Por isso, acreditamos que inserir informações pessoais prejudicam a construção noticiosa, atribuindo juízo de valor -- muitas vezes negativo e machista --, como por exemplo: se a vítima havia consumido bebidas alcoólicas antes do ocorrido; se a vítima consumia drogas; a quantidade de filhos que a mesma possuía e se eles moravam ou não com ela; se a vítima tinha relacionamento amoroso com o suspeito ou algum elo que envolvia afeto; inserir detalhes sobre o comportamento da vítima que, de alguma forma, a estereotipam e diminuem enquanto pessoa digna, não justifica a atrocidade cometida. 

Entendemos que a dinâmica de trabalho muitas vezes não permite que muitos questionamentos sejam feitos quanto à abordagem durante o processo de escrita, que as informações são obtidas por meio de sistemas das próprias polícias e o contato com outras possíveis fontes se torna inviável. No entanto, é imprescindível que haja criticidade na produção de notícias e mudança de atitude, para não perpetuarmos estereótipos machistas e, assim. combatermos as violências contra a mulher de maneira efetiva.

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