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Comportamento

Livro com 6 mil palavras nasceu de uma vida com vontade de conversar

Graciele Chamorro começou a reunir palavras em Kaiowá há 39 anos quando passou a ter contato com indígenas

Aletheya Alves | 26/11/2022 07:10
Graciela durante estudo da língua kaiowá. (Foto: Arquivo pessoal)
Graciela durante estudo da língua kaiowá. (Foto: Arquivo pessoal)

Há 39 anos, a professora paraguaia Graciele Chamorro começou a “colecionar” palavras em Kaiowá e anotar os significados em seus cadernos, tudo para conseguir conversar com quem se sentia próxima. Dessa vontade e persistência surgiu o Dicionário Kaiowá-Português com mais de 580 páginas e 6 mil palavras.

“A minha relação e vontade de ter essa relação mais profunda com os indígenas surgiu de um sentimento humano. De eu me ver neles e o fato da língua criar empatia, já que, na época, o idioma deles era o mais parecido com o que eu falava. Senti que eles tinham algo a me dizer e eu também tinha, senti que eles eram as pessoas mais próximas de mim”, introduz a professora aposentada de história indígena.

Retomando sua trajetória até chegar à publicação do dicionário, a doutora em Teologia e Antropologia conta que nasceu no Paraguai, mas se mudou para o Recife em 1977 para estudar. Formada, ela se mudou para Dourados em 1983 e ali teve seu primeiro contato com a população indígena.

Dicionário conta com ilustrações de Misael Concianza Jorge. (Foto: Kísie Ainoã)
Dicionário conta com ilustrações de Misael Concianza Jorge. (Foto: Kísie Ainoã)

Graciele conta que começou a ouvir uma língua que não parecia tão desconhecida e a partir da curiosidade se aproximou dos falantes. “Eu entendia mais ou menos porque minha língua materna era o guarani e se aproximava do kaiowá. Comecei a interagir e também a me perceber em relação a eles, isso na rua mesmo. Com o tempo, comecei a ter uma necessidade de entrar em um contato mais sério, até porque eu os via na rua em uma situação bastante precária”, detalha.

Depois das ruas, a professora narra que a aproximação foi aumentando até chegar a um dos lugares em que mais foi afetada. ”Fui para a Aldeia de Panambizinho que fica a 30 quilômetros de Dourados e lá é que criei mais laços. Comecei a perceber que queria falar mais porque quando a gente começava um assunto, a língua não dava conta e eu não entendia o que falavam”.

A partir dali, as palavras e seus significados passaram a ser anotados e pequenos glossários foram surgindo para melhorar a comunicação. “Eu comecei a estudar mesmo e assim fui juntando o material que no fim resultou no dicionário. A intenção nunca foi fazer mesmo um dicionário até porque eu imaginava que existisse, mas resultou”, diz.

Desde então, a professora passou por um fluxo de idas e vindas para Dourados, já que em 1989 saiu da cidade para estudar no Rio Grande do Sul. Sem deixar o município e os laços que fez para trás, ela continuou visitando e mantendo o vínculo especialmente com os indígenas.

Dicionário começou com a professora anotando palavras para o uso próprio. (Foto: Kísie Ainoã)
Dicionário começou com a professora anotando palavras para o uso próprio. (Foto: Kísie Ainoã)

Nesse período, a aprendizagem começou a ser unida com o universo acadêmico e entre trabalhos voluntários e aulas em universidade, os glossários foram sendo ampliados. “Quando escrevi o primeiro artigo em 1994, no Rio Grande do Sul, coloquei um pequeno glossário. Em 1995 havia um glossário maior e em 1996 um maior ainda. Cada coisa publicada ia sendo acompanhada por um glossário já que aquelas palavras que davam argumentos para os textos”.

Já em 2006, a professora foi convidada para colaborar na área de linguagem da Licenciatura Intercultural Indígena Teko Arandu da UFGD, gerando ainda mais aprofundamento do livro. “Comecei a juntar os glossários e perceber que tinha bastante palavras e fui mostrando para os alunos indígenas. Assim como em uma aula de português, alguns não conheciam algumas palavras e fui desafiando que eles escrevessem textos não só com o que conheciam”.

Na dinâmica, os alunos recebiam palavras da professora e perguntavam para as pessoas de suas comunidades os significados. “Então comecei a tentar usar aquela reunião de glossários como um dicionário de fato. Fui sentindo a alegria de descobrir, a satisfação de estar achando uma coisa nova que era importante e que era usada para que as pessoas se explicassem”, detalha.

Livro conserva 6 mil verbetes distribuídos por mais de 580 páginas. (Foto: Kísie Ainoã)
Livro conserva 6 mil verbetes distribuídos por mais de 580 páginas. (Foto: Kísie Ainoã)

Dessa união de encontros com comunidades e alunos que frequentaram a UFGD, a professora ampliou os escritos e no caminho encontrou o linguista Anderbio Martins e o editor Assis Benevenuto. “Anderbio foi nos ajudando a transformar tudo aquilo em um dicionário de fato, fomos tirando as dúvidas e construindo. Já o Assis conheci em 2017 quando veio até Dourados”.

Logo ao contar sobre o dicionário, Assis se interessou pela publicação do dicionário e em conjunto com Graciela passou a procurar meios para a publicação. Reunindo mais de 30 anos de estudos, nasceu a obra graças às relações e o desejo de conversar.

“Foi algo muito importante para mim e nunca deixei de estudar, mas também é extremamente necessário para os povos indígenas. Estamos falando de uma língua que agora possui um registro organizado e que vai ajudar e que pode vários produtos diferentes”.

Já disponível gratuitamente online neste link, o dicionário deverá ser lançado em seu formato físico em 2023.

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