Na vida e na poesia, Marcella encara batalhas de versos carregados de verdade
Jovem vai representar Mato Grosso do Sul na primeira batalha nacional de Slam para mulheres em SP
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Todos enfrentamos batalhas diárias. Marcella Ventorim, de 20 anos, por exemplo, vende doces de noite para tentar sobreviver. Mas, ela também gosta de encarar outro tipo de batalha: a de quem fala a verdade com versos autorais recitados no Slam Camélias, grupo que se reúne em espaços públicos para fazer poesia com críticas sociais.
A paixão por este tipo de encontro rendeu a jovem passagem para São Paulo, onde no dia 24 deste mês vai representar Mato Grosso do Sul na primeira batalha nacional de Slam só de mulheres, transmasculinos e genêneros dissidentes.
Marcella diz que desde de pequena sempre gostou de escrever. Mas, a família parecia já ter traçado outros planos para a garota. “Era aquela pressão de você vai para a faculdade e depois arrumar um emprego. Porém, eu não me encaixava neste plano e foi quando decidi sair de casa”, diz a jovem, que abriu mão do conforto dos pais aos 18 anos, passou pela casa de amigos e hoje divide um apartamento com a namorada e mais uma amiga.
O começo foi duro, Marcella ainda dependia um pouco dos pais, mas depois encontrou nos doces e também em sua poesia - impressa - uma maneira de ganhar dinheiro. “Nesta época fazia faculdade de Medicina Veterinária, mas larguei. Tinha certeza de que estava no lugar errado”, conta.
Muito ligada à poesia, pela internet ela conheceu o Slam. “Fiquei apaixonada por aquilo e foi quando minha namorada disse que havia aqui em Campo Grande. Eu quase não acreditei e ela me levou onde estava ocorrendo uma batalha”, lembra.
Em 2017, Marcella se deparou com o Slam misto – batalhas poéticas de todos os gêneros – e já no primeiro contato, escreveu algo rápido e recitou. “Acabei deixando este tipo de Slam devido ao machismo que sofri e foi quando me apresentaram o Camélias, só para mulheres”.
Tecnicamente, a batalha começa com um poeta, que recita seus versos e em seguida outro rebate a crítica com outra ou mesmo da sequência ao tema colocado em questão. Em geral cada um recita três poesias até que os jurados - escolhidos no momento entre público - decida quem é o vencedor.
No lugar certo, Marcella deslanchou. “Comecei a participar pelo Camélias de diversos eventos no Estado e com isso ganhando reconhecimento. Em casa, as vezes eu pensava ‘meu Deus eu sou realmente uma poeta? É isso?’”, diz.
A resposta para esta pergunta veio nas várias batalhas ganhas de 2017, até agora com as mais de 30 poesias autorais que falam sobre política, violência doméstica, feminismo, minorias, preconceito, sociedade e seus problemas.
Marcella revela que para escrever suas poesias gosta de se isolar em casa, técnica que já rendeu cerca de 30 poemas a garota.
Questionada, a jovem diz que mesmo dentro do Slam existe preconceito tanto pelo gênero quanto pela etnia, porém são velados por olhares de "será que ela é capaz mesmo?".
“Nunca foi escrachado, mas já senti muita desconfiança ou mesmo desdém e depois que me apresentava estas mesmas pessoas vinham até mim e quebravam essa impressão”, afirma.
Essa com certeza é uma das coisas que mais a motiva a continuar, provando que mulheres podem se ajudar por meio da poesia e com certeza alcançar um lugar onde muito poeta sonhou em chegar: nos ouvidos das pessoas.
Veja uma das poesias de Marcella:
A consciência humana anda adormecida
E a definição de vida distorcida
Não sei se são drogas ou se é a bebida
Mas dia após dia nossa mente é destruida
Arte é cultura desvalorizada
Artistas fadados a viver com pouco ou quase nada
Me diz quem anda contigo nessa estrada
Que é muito bonita e pouco movimentada
O topo quer uma base alienada
Que vive o pesadelo pra eles viverem o conto de fada
Nossa revolução não é televisionada
É feita dia a dia nos gritos das calçadas
O ser humano é um animal em plena caçada
Às armas apresento uma alma blindada
Maldita herança machista herdada
Homem de calça aberta, mulher de perna fechada
Oitenta e cinco reais por mês pra mulher estuprada
É isso ou aborto na base da pancada
Estado laico com bancada evangélica montada
Policia exterminando a quebrada
Infância pelo crime roubada
Esperança de futuro quase apagada
Não serei a parte que aplaude sentada
Serei a que grita revoltada
Sua mordaça não cala minha língua afiada
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