Por que a frase "rodízio de padrastos" precisa parar de ser dita?
Coluna desta semana é para problematizar a expressão "rodízio de padrastos", dita por muitas pessoas, culpando a mãe
Na semana em que mais um caso de estupro contra uma criança, cometido pelo padrasto, foi noticiado, uma enxurrada de comentários nas redes sociais coloca toda a culpa do fato na mãe. Leitores das notícias ou não, no Facebook o que mais se vê, inclusive partindo de muitas mulheres, são frases como: "esse rodízio da padrastos", "mulher que não aguenta ficar sem macho", sem que sem sequer saibam a história.
A observação partiu de uma leitora da coluna, professora de 31 anos e mãe de duas crianças. Um menino de 11 e uma menininha de 7 anos. Pra gente ela conta que até evita olhar os comentários das notícias policiais para manter a sanidade mental. "Mas esse eu fui ler e, na sua maioria, eram comentários que giravam em torno do mesmo tipo de coisa: a culpa sempre é da mãe. O problema são as mulheres que não conseguem ficar sem macho. E isso me deixou muito irritada", relata.
A professora então fez uma busca para ver os comentários das notícias de diferentes veículos e se deparou, em todos eles, com mensagens que seguiam o mesmo teor. "'Mal conhecia o cara e já coloca dentro da casa dela'... Se você olhar, 80% dos comentários são desse tipo, sabe? Eu fiquei horrorizada e cheguei a escrever para as pessoas pararem de culpar a mãe, que eles estão culpando uma vítima também, porque certamente ela está sofrendo com isso para ficar aguentando essas falas", afirma.
Entre o "rodízio de padrastos" que permeia muitas das falas, a professora parou para questionar: "cadê esse pai? Como ele também não percebeu o que está passando na vida dessa menina?" No dia a dia de sala de aula, ela comenta que muitas vezes são os professores que percebem um comportamento diferente, que pode ser sinal de abuso. "E as pessoas culpam a mãe, mas ninguém pergunta do pai participando na vida da filha e eu também vivo essa realidade. Sou mãe solo, tenho dois filhos e é óbvio que eu penso um milhão de vezes antes de colocar uma pessoa dentro da minha casa", desabafa.
Depois que a caçula nasceu, ela conta que só namorou uma vez. "E em nenhum momento ele ficava sozinho com as crianças. Só vinha para a minha casa quando meus filhos não estavam. Será que eu nunca vou ter a liberdade de ter alguém do meu lado? Por que a gente vive essa preocupação constante? Qualquer pessoa que se aproxime de mim, eu já preciso pensar se vai tentar fazer algo com meus filhos, e mesmo assim as pessoas ainda nos culpam".
Confesso que esse depoimento dela me deixou bem pensativa e eu resolvi ir atrás da mãe do caso da semana. Embora não cubra mais polícia há anos, tentei ver se ela falaria comigo. Por mensagem, me identifiquei e escrevi que queria ouvi-la sem julgamentos e já adiantando que a culpa não era dela.
Passado alguns minutos da visualização, ela me respondeu, relatando por áudio que não quer o que caso pare por aqui, tudo passe e seja esquecido. "Através disso que eu estou vivendo, quero que outras mães, outras famílias fiquem atentas com os filhos, se eu pudesse fazer algum tipo de coisa hoje seria para alertar os pais a terem mais cuidado".
A primeira resposta sai na defensiva, de quem já está calejada pela violência que a filha sofreu e que ela vem aguentando também. "Eu nunca percebi o que ele era, olha a cara dele...", diz. E, na sequência, ela me manda fotos e até o perfil no Facebook em que ele aparece ao lado da mãe na foto principal.
"As pessoas estão me julgando, porque eu não cuidei, porque eu não vi o que estava acontecendo", conta.
Oito dias atrás, ela acordou de um cochilo e encontrou só uma das filhas dentro de casa. Ao procurar pela mais velha, flagrou a menina com as roupas abaixadas junto do então marido dela no banheiro dos fundos. "Ele me pediu desculpas de tudo quanto foi jeito, falou pra mim ficar com a casa, que me dava tudo para eu não contar pra ninguém, que seria uma vergonha para a família. Eu saí de lá e fui direto para a Casa da Mulher Brasileira, minha filha fez perícia e ele fugiu", conta.
Os dois se conheceram no ano passado, através da irmã dele. "Ela que nos apresentou, disse que ele poderia ser uma ótima pessoa pra mim, e ele era muito bom. Me apaixonei, comecei a namorar e vim morar com ele. Eu jamais imaginaria passar por isso", se culpa a mãe.
O pai das meninas mantém contato e inclusive chegou a conhecer o padrasto. "Ele o achou muito legal, dizia que era um cara muito bom, que estava cuidando bem da gente", completa.
Defensora Pública do Estado de Mato Grosso do Sul e coordenadora do Nudem (Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher), Thais Dominato frisa que primeiro devemos nos ater ao fato de que a maioria dos casos de violência sexual infantil acontece dentro de casa.
"Então, a responsabilidade desse cuidado é de toda a família. Depois, culpar só a mãe, e aqui estou falando daquela mãe que de fato não está envolvida no cometimento da violência, é mais uma vez responsabilizar a mulher por um crime que ela não cometeu. É reforçar a ideia de que ela, porque é mãe, porque é mulher, não pode viver para outras coisas, não pode namorar, não pode sair com os amigos, mas tudo isso é perfeitamente admitido para o pai e ninguém questiona, por exemplo, o número de namoradas", levanta.
Reforçando estereótipos, as falas dirigidas a culpar a mãe acabam deixando o principal em segundo plano. "Não se dá a importância devida ao abuso cometido pelo criminoso que é o grande errado nessa história. Invertemos valores, reforçando o machismo", diz.
"Agora está todo mundo falando que eu sou a culpada, como que eu não vi, porque deixei isso acontecer, mas eu jamais imaginei...", lamenta a mãe que ainda tenta saber do paradeiro do acusado.
Que essa mãe e tantas outras vítimas recebam acolhimento e não o nosso julgamento. Vou deixar meu e-mail aqui, como de costume: paulamaciulevicius@gmail.com.