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Comportamento

Quando avó partiu, saudade ficou nos espíritos brincalhões do Pantanal

Além das histórias populares, Geny deixou lições e inspirações sobre o real protagonismo da mulher pantaneira

Thailla Torres | 29/08/2020 07:45
Dona Eugênia Alves Corrêa de Albuquerque, conhecida por Geny. (Foto: Arquivo Pessoal)
Dona Eugênia Alves Corrêa de Albuquerque, conhecida por Geny. (Foto: Arquivo Pessoal)

Durante anos a geógrafa Icléia Albuquerque de Vargas só queria ouvir histórias, e sempre teve quem contasse as melhores. Do outro lado, a pessoa narrava com alegria de ver a imaginação alimentada pelas fábulas que compunham o imaginário popular do Pantanal. O mundo inteiro podia escrever livros com grandes contos, mas para Icléia, a história mais importante era dela: da avó.

Dona Eugênia Alves Corrêa de Albuquerque, conhecida por Geny, era digna de virar personagem de livro ou filme. Não tem um da família que deixe de contar em detalhes a jornada dela, uma mulher que foi mãe de oito filhos e adaptou-se à vida no campo, à rudeza do Pantanal em uma época em que não havia estradas, nem qualquer tecnologia de comunicação. As notícias chegavam sempre nos lombos de burros, ou cavalos ou carros de bois, que conduziam algumas mercadorias e cartas trocadas entre parentes e amigos

Geny nasceu em Cuiabá, lá recebeu sua formação, tornando-se uma moça de “fino trato” como diziam na época, uma pianista, inclusive. Em 1911, casou-se com o avô de Icléia, Christóvão de Albuquerque, homem simples, pecuarista que a levou para morar em uma fazenda no Pantanal da Nhecolândia.

Longe das dádivas da cidade, assumiu todas as atividades de cuidados com a casa, animais domésticos e seu entorno, responsabilizando-se pela numerosa família e ainda se preocupando com os destinos da propriedade. Nessa época, as fazendas pantaneiras eram grandes latifúndios e dificilmente os proprietários davam conta de monitorar toda a área. O gado bovino era numeroso e vivia solto em enormes invernadas. A família de Christóvão e Geny viveu por muito tempo nessa fazenda pantaneira, depois mudaram-se para outra grande propriedade na região da Bodoquena, a Fazenda Perseverança.

Geny vivenciou inúmeras dificuldades em sua trajetória como fazendeira e, na década de 1950 decidiu separar-se e mudou-se definitivamente para o Rio de Janeiro, onde permaneceu até o fim da vida, próximo a filhos e netos que lá viviam. Faleceu em 1970 deixando saudade e muitas histórias.

“Foram inúmeras histórias que minha avó me contava, quando vinha nos visitar em Aquidauana, todos os anos e passava praticamente um mês conosco. Sempre destacava as dificuldades, mas também exaltava suas relações com o meio, muitas vezes inconstante”, lembra a neta.

De Geny, ficou para a neta muita coisa, mas, sobretudo, a sensibilidade pela força da atuação da mulher na sociedade, em especial nos ambientes considerados mais masculinizados, como é atribuído ao Pantanal.
De Geny, ficou para a neta muita coisa, mas, sobretudo, a sensibilidade pela força da atuação da mulher na sociedade, em especial nos ambientes considerados mais masculinizados, como é atribuído ao Pantanal.

Mas as melhores eram sempre aquelas que envolviam universos fantásticos de assombrações, com presença de personagens sobrenaturais, os “espíritos brincalhões” como Geny chamava. “Na sua solidão pantaneira, mergulhada naquela paisagem pujante, vó Geny convivia com personagens como o Saci, a Mula-sem-cabeça, o Pé-de-garrafa, o Bugio que já foi gente, dentre outros. Certamente, o estilo de vida em um ambiente singular e distante, permitiu sua convivência com mitos, lendas e seres “de outro mundo” próprios de sua época e lugar”, acredita a neta.

Geny sempre se lembrava que havia um grande baú revestido de couro que muitas vezes emitia sons, gemidos, as vezes desesperados e assustadores. Também se lembrava quando arrumava a mesa de almoço, organizando tudo para receber o marido, filhos e empregados para se alimentarem, e quando ia ver, todos os pratos que havia deixado emborcados, estavam desvirados e com pedaços de algodão branco no centro. Também contava histórias das porteiras assombradas. Muitas das porteiras eram decoradas com uma caveira de boi, objeto carregado de simbologia, que impunha muito respeito, de certa forma estabelecendo normas de entrada e de saída nos estabelecimentos rurais, em períodos noturnos.

“Todas essas histórias de vida e do imaginário revelavam para mim a coragem, a inteligência e a criatividade da vó Geny, submetendo-se às rudezas impostas pelo meio e pela sociedade da época. Assim como a sua força e autonomia ao tomar a decisão de deixar o Pantanal quando sentiu que havia cumprido sua missão e, sozinha, partir para o Rio de Janeiro”.

O casal Geny e Christóvão de Albuquerque. (Foto: Arquivo Pessoal)
O casal Geny e Christóvão de Albuquerque. (Foto: Arquivo Pessoal)

O que ficou de quem partiu? -  E o fato de se impressionar com as histórias da  avó provocaram reflexões em Icléia sobre o papel da mulher no Pantanal e na sociedade como um todo. “Isso foi se intensificando quando me deparava, repetidas vezes, com a promoção dos feitos dos homens no Pantanal. Talvez, o ápice de minha incredulidade tenha sido quando em 2003, me deparei com uma expressiva reportagem veiculada em importante revista de circulação nacional dirigida ao público masculino, que explorava o lado sensual do homem pantaneiro, intitulada “O último macho”, lembra.

Outro fator fomentador de suas minhas reflexões nesse tema foi a carreira da cantora e instrumentista Helena Meirelles, instrumentista da viola caipira, usando da sua arte como forma de sobrevivência, Helena Meirelles só foi reconhecida aos 70 anos de idade. “Antes disso sofreu toda espécie de preconceito e discriminação por ser mulher e lutar pela sobrevivência nos espaços pouco receptivos à presença feminina. Ao final da vida alcançou a glória e pode disseminar sua arte e a música de identidade sul-mato-grossense”.

Ainda no campo dessa da arte musical, Icléia lembra da cantora Delinha, hoje reconhecida como a “Rainha do Rasqueado”, uma das principais representantes do campo musical de Mato Grosso do Sul, que durante quase toda sua vida esteve à sombra do seu marido Délio. Hoje, depois de mais de sessenta anos de dedicação à música regional, se sabe que ela sempre foi a maior expressão da dupla Délio e Delinha.

Icléia durante aula de campo no curso de Geografia no Pantanal, às margens do Rio Miranda.
Icléia durante aula de campo no curso de Geografia no Pantanal, às margens do Rio Miranda.

“Então, a partir das histórias de minha Avó Geni, de Helena Meirelles, de Delinha e de tantas outras mulheres pantaneiras corajosas e destemidas, que durante suas vidas se dedicaram em construir realidades mais harmoniosas para todos, reforço minha convicção a respeito da necessidade de se olhar com maior atenção aos feitos dessas mulheres do Pantanal”.

De Geny, ficou para a neta muita coisa, mas, sobretudo, a sensibilidade pela força da atuação da mulher na sociedade, em especial nos ambientes considerados mais masculinizados, como é atribuído ao Pantanal. “Na mídia em geral, e nos livros, pouco se percebe a presença feminina no Pantanal. Então, a necessidade de se promover a visibilidade da mulher, seu empoderamento nos diversos espaços de vida do Pantanal me impulsionam à luta.”

É por isso que Icléia, aos 61 anos, participa como membro da Mupan (Mulheres em Ação no Pantanal), ONG focada na melhoria da qualidade de vida da população pantaneira e à conservação do bioma. Neste mês a ONG completou 20 anos de ação organizando debates, oficinas, formações, favorecendo ambientes de aprendizagem, levando os atores locais à multiplicação de debates e reflexões sobre questões de gênero e ao fortalecimento do papel das mulheres nos espaços de tomada de decisão.

Icléia destaca que as mulheres têm participação cada vez mais intensa, em todas as áreas e setores da economia no Pantanal. Tanto nas fazendas de pecuária, quanto nas atividades turísticas e de pesca, inclusive na coleta de iscas, atividade considerada muito insalubre, a presença feminina é expressiva.

“As Escolas Pantaneiras têm em sua maioria a presença da mulher como professora, ou gestora, ou merendeira. Dentre os ribeirinhos, habitantes das comunidades localizadas às margens dos rios e lagoas, a presença feminina é destacada. Nas terras indígenas, também é forte a presença da mulher. Espera-se que essas presenças sejam mais visibilizadas e respeitadas por todos”, finaliza.

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Icléia no Passo do Lontra, inspirada e sempre lembrando as histórias da avó.
Icléia no Passo do Lontra, inspirada e sempre lembrando as histórias da avó.


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