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Comportamento

Sem sair para nada desde março, Paulinha faz jus a mãe "guerreira"

Paulinha tem cumprido quarentena à risca por questão de saúde; trabalha de casa e cuida da filha Alice, apesar da deficiência

Paula Maciulevicius Brasil | 26/07/2020 10:03
Paulinha, Alice e Alexandre: família segue à risca quarentena. (Foto: Arquivo Pessoal)
Paulinha, Alice e Alexandre: família segue à risca quarentena. (Foto: Arquivo Pessoal)

Tenho uma vizinha que nunca perdeu a doçura e a gentileza, mesmo diante de uma pandemia que para ela pode ser fatal. Por coincidência, é a minha xará. A Paulinha Zanata tem AME (Amiotrofia Medular Espinhal) grau 2, uma doença neuromuscular progressiva e usa cadeira de rodas. Casada com Alexandre, que tem Retinose Pigmentar, doença que provoca a degeneração da retina, juntos são pais de Alice, e inclusive já foram matéria aqui no Lado B. A Alice é uma garotinha fofa de 3 anos que há muito tempo eu não vejo brincar lá embaixo.

Isso porque ela e a mãe estão sem por o nariz para fora do apartamento desde o dia 16 de março. Alice saiu da escola e também viu serem dispensadas as funcionárias que ajudavam a família nos cuidados com ela e a casa. O pai também está de quarentena desde o dia 18 de março e só sai de casa para levar o lixo.  Cada "saída" tem lhe custado as mãos, porque a higienização com sabão e álcool em gel lhe trouxe dermatite.

A quarentena para eles é fundamental, já que as complicações da covid-19 dão no trato respiratório e o tratamento é a entubação. "No caso de uma doença neuromuscular a entubação pode ser fatal já que o relaxamento dos músculos respiratórios e do diafragma podem ser irreversíveis", explica Paulinha.

Alice brincando no escritório dos pais. (Foto: Arquivo Pessoal)
Alice brincando no escritório dos pais. (Foto: Arquivo Pessoal)

No dia a dia, Paulinha conta que eles estavam acostumados a ter ajudantes, principalmente nos cuidados com a pequena Alice. Os dois são funcionários públicos e de repente se viram sozinhos, responsáveis por todas as tarefas diárias, o que foi a parte mais difícil.

"Somando a isso,  os estudos, (cursamos especialização em Direito Público além do meu curso de Direito), o home office (em que cumprimos a carga horária do expediente), os cuidados com os nossos três filhos felinos, encarar tudo isso com as nossas deficiências não é nada fácil", diz.

Em nenhum momento ela reclama das condições que a pandemia impôs a eles ou da sobrecarga, pelo contrário. "Uma certeza temos, nos ajudando e nos complementando, sairemos disso tudo muito mais fortes", sustenta.

Para a pequena, os pais explicaram que lá foram tem um "bicho muito feio e perigoso", por isso ela não poderia mais ir à escola. Surpreendentemente, acredito que pelo cuidado e criação recebidos, apesar de tanto tempo dentro de casa, Alice só pediu para sair duas vezes.

Brincando com o papai. Alice tem se acostumado a ficar em casa. (Foto: Arquivo Pessoal)
Brincando com o papai. Alice tem se acostumado a ficar em casa. (Foto: Arquivo Pessoal)

"Uma delas ao se sentar no carrinho triciclo dela, por pensar que sairíamos pra passear como fazíamos. A outra vez, ao ver a piscina da nossa sacada, correu pra vestir o maiô e a boia, na expectativa de que desceríamos. Chorou por um bom tempo ao entender que não poderia ir", descreve a mãe.

Depois de muitas tentativas, eles acabaram encontrando uma rotina menos cansativa e estressante para a família. Os cuidados domésticos ficam concentrados na parte da manhã, enquanto a Alice dorme.

"Como nosso expediente é no período vespertino, recorremos aos desenhos da internet em todas as televisões de modo que a atenção dela se reveze entre um e o outro ao longo da tarde. Revezamos os brinquedos novos aos antigos que são astuciosamente escondidos para serem entregues em momentos necessários", relata.

Alguns dias tudo isso funciona, mas em outros só resta mesmo o exercício da paciência.

No início do isolamento, eles até tentaram cozinhar, mas devido ao pouco tempo entre cuidar da casa e trabalhar, resolveram comprar comida pronta. São os aplicativos de comida diária, mercado e farmácia que atendem à família, com todo o rigor de higiene.

"Tomamos o cuidado de colocar uma cadeira em frente à porta do apartamento e orientamos ao entregador para que deixe a encomenda sobre ela. O Alexandre se detém na higienização individual de tudo o que chega tendo inclusive adquirido uma grave dermatite nas mãos e nos braços pelo uso frequente de álcool e sabão. Encomendas entregues pelos correios passam uns dias em “quarentena” num espaço especialmente reservado p isso até que possam ser desembrulhados em segurança", descreve.

A criatividade também tem sido grande aliada e o casal comprou um robô aspirador de controle remoto para ajudar na limpeza.

De todas as restrições que o coronavírus trouxe, a que Paulinha mais sente falta é o contato com a família, ainda que existam as vídeo chamadas, os familiares não podem acompanhar de perto o crescimento da Alice numa fase tão especial. "O seu desenvolvimento, o aperfeiçoamento  da fala, a compreensão mais completa das coisas e principalmente a manifestação da personalidade dela que fica cada vez mais explícita", narra.

Família em chamada vídeo, matando as saudades. (Foto: Arquivo Pessoal)
Família em chamada vídeo, matando as saudades. (Foto: Arquivo Pessoal)

Outra saudade é a de poder sair para passear e mostrar para Alice o mundo externo, hoje percebido como tão maravilhoso, porém inacessível.

Na maternidade, o "guerreira" muitas vezes é usado como adjetivo mais leve para as mães que dão conta de tudo.

"Como mãe é preciso demonstrar calma e tranquilidade mesmo diante das situações mais difíceis e inesperadas. Tentamos mostrar naturalidade num dia a dia que se repete quase que interminavelmente. Procuramos fazer com que atitudes novas e necessárias como tomar sol pela janela do quarto seja algo natural e corriqueiro mesmo que jamais imaginado há alguns meses", narra.

A primeira coisa que Paulinha quer fazer quando puder é um piquenique no parque para ouvir o canto dos pássaros. "E o toque do vento no rosto e o cheiro da grama mostrando para à pequena Alice o valor dessas coisas tão simples que hoje nos é privado".

Apesar do cansaço, ela fala que tem recorrido à leitura para relaxar e “recarregar” as energias. "Tenho orado muito para que tenhamos a serenidade necessária até que tudo isso passe e tenhamos a nossa rotina “normalizada”, mas principalmente tenho tentado não me esquecer de quem eu sou mesmo diante de circunstâncias tão complicadas".

Com exceção das restrições, a mãe conseguiu perceber que o vínculo familiar se fortaleceu muito. "Talvez por estarmos sozinhos e vermos que o contentamento da Alice se dá principalmente por apenas estar com os seus pais e os seus brinquedos".

Paulinha, eu te admiro demais e acho que sua história e seu dia a dia na quarentena mereciam ser relatados. Que você inspire outras famílias, como faz com a nossa. E quando a gente puder, vamos fazer aquela festa com a criançada lá embaixo.

Tem uma história de mãe para contar? Manda pra mim: paulamaciulevicius@gmail.com.

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