Lixão na rede de esgoto, uma pedra no caminho do saneamento da Capital
Esgoto direto em córregos e resíduos na rede coletora caracterizam velhos hábitos
A cada minuto, 2,3 mil litros de esgoto bruto desaguam em quatro cursos d’água de Campo Grande. No ano passado, 1,33 mil toneladas de lixo foram tiradas por gradeamento da rede de esgoto da Capital. Também são removidas, anualmente, 200 mil toneladas de areia, devido a ligações clandestinas.
Esses números funcionam como sinal de alerta: mesmo com a universalização do sistema de esgotamento sanitário, prevista para 2025, Campo Grande continuará enfrentando sérios problemas de saneamento básico se não houver mudanças nas práticas de descarte de resíduos.
Em sete anos, todos os domicílios da Capital terão acesso à rede de esgoto, conforme a concessionária Águas Guariroba. A universalização do serviço resulta de processo, feito em três etapas e iniciado em 2006. Já foram realizadas duas fases, que demandaram recurso total de R$ 255 milhões, o que permitiu contemplar, em 2013, 73% da cidade com a coleta e tratamento de esgoto.
Nesta terceira etapa do programa, estão sendo aplicados R$ 636 milhões, de acordo com a concessionária. Esse valor corresponde a investimento per capita de R$ 774, considerando a população da Capital de 821.186 habitantes, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Com isso, Campo Grande ingressa no reduzido grupo de capitais brasileiras, que coletam e tratam o esgoto em sua totalidade. Ranking do Instituto Trata Brasil de 2017 (ano base 2015) mostra que, entre as capitais, apenas Curitiba tem índice de 100% em coleta e tratamento de esgoto e outras duas cidades estão em patamar acima de 90%: São Paulo (96,34%) e Belo Horizonte (91,32%).
Investir na consciência – Investimento na ampliação da rede coletora e no tratamento do esgoto é fundamental. No entanto, há outro problema a ser resolvido, que não depende diretamente de dinheiro e sim de conscientização e mudanças de hábitos.
Dados do Atlas Esgotos, estudo elaborado pela ANA (Agência Nacional de Águas) mostram que, da parcela populacional de Campo Grande que ainda não tem acesso à rede, 3,2% lançam quantidade estimada de 38,9 litros por segundo de esgoto no rio Anhanduí, nos córregos Imbirussu e Gameleira e no Ribeirão das Botas. São 2,3 mil litros por minuto.
Com essa vazão, chegam, diariamente, aos cursos d’água da Capital a média de 1.362,3 quilos de carga DBO (Demanda Bioquímica de Oxigênio), material orgânico biodegradável, que intensifica a poluição.
No Brasil, com problemas críticos de saneamento, os números de Campo Grande estão entre os menores. Na média nacional, ainda conforme o estudo, 27% da população não têm acesso à rede de esgoto e nem usam fossa asséptica. Entre as capitais, essa parcela chega a 63,6% – é o caso de Aracaju.
Preservativos, garrafas, tabletes de maconha, animais mortos; tudo é jogado na rede
A rede de esgoto deveria funcionar apenas como rede de esgoto. No entanto, pelos 1,4 mil quilômetros de rede coletora existente na Capital, escoam óleo de cozinha, restos de comida, preservativos, absorventes, fraldas descartáveis, papel de bala, garrafas, latas, entre diversos outros tipos de resíduos. Também já foram encontrados dinheiro, animais mortos, tabletes de maconha e, o caso mais grave e triste, um feto humano.
“Isso foi há alguns anos. Foi lá na região do Cabreúva. Nós ficamos chocados e chamamos a polícia”, lembra-se o operador sênior da Águas Guariroba, Adenilton Francisco Rodrigues, que trabalha na ETE (Estação de Tratamento de Esgoto) Los Angeles.
De acordo com a concessionária, somente no ano passado, foram retirados 1,33 mil toneladas de resíduos da rede de esgoto da Capital. Isso corresponde à média de 950 quilos de lixo por ano a cada quilômetro de rede.
“Recebemos muito lixo”, afirmou a engenheira bioquímica Fernanda Barreto, coordenadora de esgotamento da Águas Guariroba, enquanto caminhava com a equipe de reportagem pela ETE Los Angeles. O local recebe quase 900 litros de esgoto por segundo. No entanto, não há apenas efluente (o líquido de esgoto), mas também muito resíduo sólido.
“Tampinha de garrafa, plásticos, pote de shampoo, de condicionador, carrinho de brinquedo, animais mortos, como galinha, cachorro e capivara; enfim, de tudo. Até bala de fuzil já tiramos da rede”, listou a bioquímica.
Durante a entrevista, ela foi mencionando outros tipos de resíduos, que são lançados na rede coletora. “Muitas pessoas jogam lixo diretamente nos PVs”, afirmou a bioquímica, em referência aos poços de visitas, mais conhecidos como bueiros.
Além do lixo jogado diretamente nos bueiros, é comum o descarte incorreto de resíduos feitos a partir das residências. A coordenadora cita alguns exemplos: pó de café, óleo e restos de comida na pia, papel higiênico, fralda descartável, absorvente e camisinha no vaso sanitário, entre outros materiais.
Óleo – Fernanda enfatiza que entre os maiores “vilões” da rede coletora, está o óleo de cozinha. Ela explica que o óleo se solidifica, formando calotas de gordura que entope a tubulação.
A bioquímica afirma, ainda, que o trabalho das bactérias que, durante o processo de tratamento, reduzem as matérias orgânicas, é muito maior em relação às moléculas de óleo.
“Já nos córregos, o óleo forma uma camada sobre a água, dificultando a irradiação e a difusão de oxigênio”, acrescenta. O resultado é a morte de peixes e outros animais e plantas.
Montanha de areia – Nas estações de tratamento, o lixo é separado do efluente por grades que ficam em tanques e colocado em caçambas para o descarte correto. Depois do gradeamento, o líquido do esgoto passa pelo desarenador, que remove a areia.
O volume de areia é muito maior que dos demais materiais. Fernanda informou que são retiradas, anualmente, cerca de 200 mil toneladas de areia da rede de esgoto de Campo Grande.
Ela explica que o problema é decorrente de ligações clandestinas para o escoamento de água pluvial. Soma-se a isso o costume das pessoas de “varrer” a terra da calçada com água de mangueira.
Depois do gradeamento e desarenação, o esgoto segue para um reator, onde é retirada a matéria orgânica (tratamento biológico) e forma um subproduto de gases – que são queimados – e lodos – que são desidratados e colocados no solo do viveiro de mudas da empresa. Antes de ser lançado nos córregos, o efluente ainda passa por processo de tratamento físico-químico para clarificação e controle de odor.
Redução de DBO – Além da ETE Los Angeles, que é a maior, Campo Grande tem outra estação de tratamento de esgoto, a Imbirussu. As duas recebem 1 mil litros de esgoto por segundo, de acordo com a Agência Nacional de Águas. Todo esgoto coletado na cidade é tratado e devolvido aos córregos com quantidade de DBO reduzida, em volume exigido pela legislação ambiental.
Conforme a ANA, no esgoto de Campo Grande, a carga DBO diária totaliza 41.917 quilos. Desse volume, 33.370 quilos vão para as estações de tratamento, dos quais 8.714 são escoados para os cursos d’água. Esse volume, que representa eliminação de 73% do inicial, não é suficiente para causar impactos no meio ambiente.
Alunos de EJA fazem caixa para formatura com venda de sabão de óleo saturado
O óleo de cozinha, um dos principais causadores de obstruções na rede de esgoto, vai garantir recurso para a formatura das turmas da EJA (Educação de Jovem e Adulto) da Escola Professora Thereza Noronha de Carvalho, no Parque do Lageado, em Campo Grande.
Sob a coordenação da professora de Química, Déborah Viana, o projeto “Sabão ecológico”, que envolve diversas disciplinas, ajudou na redução da evasão escolar e no aumento do interesse e do desempenho dos alunos.
“Eles faltavam muito, principalmente na sexta-feira. Depois que iniciamos o projeto, estão muito mais interessados e a escola só fica cheia”, contou Déborah.
A ação é coletiva e envolve conteúdos de diferentes disciplinas: em Artes, foram produzidos pelos alunos, na sala de tecnologia, desenhos e outras imagens usadas nos rótulos dos produtos e demais materiais do projeto; em Língua Portuguesa, foi trabalhada receita (para produção do sabão líquido e sólido) como gênero textual; em Física, os alunos aprenderam sobre temperatura; em Biologia, o foco foi ecologia, com ênfase na reciclagem; em Matemática, os estudantes realizaram cálculos necessários na receita; em Filosofia, foi provocada reflexão sobre práticas comuns de descarte do óleo através de resposta e debate de um questionário; e, em Química, que concentrou a maior parte do conteúdo, foi abordado, entre outros assuntos, reações químicas, soluto, solvente, etc.
O projeto ajudou a aluna Sueli Garcia Ramos, 39 anos, a mudar de hábito no descarte de óleo de fritura. “Antes, não sabia como juntar. Então, jogava na pia. Agora, além de não fazer mais isso, falo para outras pessoas como elas devem fazer”, contou. Sueli também pensa em transformar a técnica de produzir sabão em fonte de renda.
A professora Déborah estima que pelo menos 700 litros de óleo já foram usados no projeto para a produção de sabão. “Os alunos trazem de casa e também coletam com os vizinhos”, informa.
Os produtos estão sendo vendidos pelos alunos e professores. O dinheiro arrecadado alimenta caixa para custear a solenidade de formatura, agendada para o dia 1º de dezembro, uma sexta-feira. A festa será na própria escola e, como todas as sextas-feiras posteriores ao início do projeto, contará com a participação de muitos alunos.
Eco Plantar, um drive thru ao contrário
Um drive thru ao contrário: as pessoas não adquirem produtos para consumir, mas deixam produtos consumidos. É essa a lógica do Drive Thru Ecológico Eco Plantar. “É logística reversa", define o educador ambiental, Rodrigo Pereira de Albuquerque, que está à frente do projeto.
A Eco Plantar está entre as iniciativas que contribuem para reduzir os resíduos que poderiam ser jogados na rede de esgoto. “Recebemos óleo de cozinha, garrafas e eletrônicos”, enumera.
Rodrigo comenta que, de modo geral, as pessoas não se sentem responsáveis pelo lixo que produzem. “Tanto é que muitos perguntam por que não vamos buscar na casa delas? Eles não se veem na obrigação de coletar e descartar o próprio lixo”, observa o educador.
O projeto visa reduzir resíduos que contaminariam a água, ajudando, de modo específico, no trabalho dos catadores de material reciclável. “Queremos facilitar a vida dos catadores, que chegam a percorrer 40 quilômetros por dia em Campo Grande”, conta. Os 40 quilômetros mencionados por Rodrigo são quase a distância da Capital a Jaraguari.
O material coletado pela Eco Plantar é destinado a cooperativas de catadores. “Além de valorizar o catador, ajudamos a melhorar a qualidade de nossa água. Podemos deixar um mundo melhor a nossos filhos”, acredita.
Muito menos óleo – A Eco Plantar não atua sozinho. Entre os parceiros da entidade, está a Katu oil, empresa especializada na coleta de óleo saturado em Campo Grande. O produto é recolhido de lanchonetes, supermercados e outros estabelecimentos. Recentemente, em parceria com a Águas Guariroba, a Katu passou a coletar óleo de pontos instalados em lojas da rede Comper.
O sócio-proprietário da empresa, Caio Arakaki Gasparini informa que é considerável a diversidade de derivados feitos a partir do óleo. “Sabão, biodiesel, tinta, massa de vidro, vela, ração animal”, lista. Do material coletado pela Katu, é produzida ração em parceria com outra empresa.
Caio destaca a importância de retirar o óleo que iria para o esgoto, mencionando o potencial de contaminação desse produto. "Cada litro de óleo lançado no esgoto pode contaminar um milhão de litros de água", informa.
Só neste ano, a Katu coletou 500 mil litros de óleo, média de 50 mil litros por mês. A empresa foi aberta no fim de 2013 e, desde o início de 2014, já recolheu 1,3 milhão de litros. Se todo esse volume de óleo saturado fosse para a rede de esgoto, a quantidade de água contaminada chegaria à casa dos quatrilhões de litros.