Por 36 bairros da cidade, Rio Anhanduí se transforma e sobrevive
Local de favela, vilão das enchentes e cartão postal em potencial: há quem viu os 120 anos da Capital passar no reflexo do rio
Sobreviver cortando 36 bairros de alta densidade populacional deixa profundas cicatrizes da pesada rotina do progresso. Mas o Rio Anhanduí, o maior de Campo Grande, consegue a façanha de resistir. O curso d’água é testemunha dos 120 anos de vida da Capital e a população do entorno observadora de suas transformações.
As águas já serviram de espelho para pobreza de barracos de lona instalados as suas margens e também, com sua fúria, já foram motivo de lágrimas para quem perdeu tudo quando ele transbordava. Hoje, arborizado e ponto privilegiado para observação de capivaras, cágados, peixes e pássaros, a quem veja no local oportunidade de fazer da natureza, seu quintal.
Na cidade - Em frente ao Horto Florestal e ao Monumento dos Imigrantes, na Avenida Ernesto Geisel, o impacto da urbanização no rio é explícito. No concreto, já rachado em alguns trechos, as árvores do entorno se espremem para crescer e as garças esquentam os pés para pescar algum alimento no rio.
Há dois anos, Juliana Carla Ortolan Abraão, 35 anos, escolheu ponto de comércio em frente ao córrego para montar seu negócio. Em dias de chuva, o local já pareceu escolha infeliz, mas em dias de sol parece ter potencial para se tornar cartão postal da cidade. “Podia ser um lugar mais bonito”, ressalta.
No trecho do rio próximo a região central da Capital, o progresso não para. A novidade agora é revitalização das margens do Anhanduí. Iniciada no ano passado, a obra tem fins práticos, evitar que o rio transborde, no entanto, a nova estrutura implantada já muda a paisagem.
Os barrancos se transforam em paredão de pedra. As passarelas para pedestres se tornaram acessíveis e os corrimãos prateados dão aspecto moderno a estrutura. A rua que o margeia também será renovada. Serão recapeadas as duas pistas da avenida, numa extensão de 917 metros, da Rua Santa Adélia até a Rua do Aquário.
"Eu nunca imaginei que moraria perto de um shopping".
Maria de Fátima, 65 anos.
As transformações parecem sonho para quem vive na região há 45 anos, como a aposentada Maria de Fátima Braz, 65 anos. Quando ela se mudou para o bairro Taquarussú, as margens do rio eram favela. Barracos de lona serviam de moradia para muitas famílias, quando não eram levados pelas águas das enchentes.
Conforme a aposentada, a mudança dos sem teto para moradias, no entanto, não livrou do abandono este trecho do córrego. Por muitos anos, terrenos baldios e obras paradas marginalizaram a região. Agora, a paisagem que o bisneto de 3 anos de Aparecida testemunha é bem diferente. “Eu nunca imaginei que moraria perto de um shopping”, afirma se referindo ao empreendimento inaugurado à beira do rio em 2011.
"Aqui enche de capivara no final da tarde. É a coisa mais bonita. O pecado é que eles enchem de lixo".
Aparecida dos Santos Freitas, 55 anos.
No bairro – No sentido bairro, as margens do Anhanduí ganham aspecto mais natural, porém, ainda refletem mazelas sociais. Na altura do cruzamento entre a Avenida Ernesto Geisel e Avenida Fernando Correa da Costa, o pontilhão virou moradia para muita gente. A quantidade de lixo doméstico no caminho revela o que às vezes, as árvores escondem: a triste realidade de quem faz do concreto teto para comer e dormir.
Levantada sobre o Anhanduí para encurtar caminho de pedestres e ciclistas entre o Guanandi I e o Guanandi II, uma ponte de madeira acaba servindo de mirante de animais mesmo para quem passa por lá apressado. “Aqui enche de capivara no final da tarde. É a coisa mais bonita. O pecado é que eles enchem de lixo”, lamenta a dona de casa e moradora da região há mais de 20 anos, Aparecida dos Santos Freitas, 55 anos.
Na altura do bairro Aero Rancho, o mais populoso da Capital - onde vivem 36 mil pessoas, segundo o IBGE -, as margens do rio se alargam. Ali, as margens ganham aspecto de jardim. Por trás de estacas de madeira enfileiradas, logo após o campinho de futebol, se esconde um pomar.
Pés de mandioca, laranja e mamão, além de hortelã e cebolinha são algumas das plantas encontradas ali, ao acesso de todos. Mas a organização do espaço tem explicação. Foi o pai da missionária Bete Fernandes, 46 anos, quem começou tudo há uns 30 anos, quando, como ela mesmo diz, o bairro era só barro e nem asfalto a avenida tinha.
Hoje, o senhor de 74 anos passa mais tempo em uma chácara afastada da cidade, mas não deixa de cuidar do espaço periodicamente. “É bem cuidada e acaba servindo para comunidade, porque as pessoas pedem uma hortelã, uma cebolinha para cozinhar”, explica .
No mato – O curso do rio extrapola o perímetro urbano. Mas na fronteira com o campo, ele ainda carrega as marcas da poluição. No trecho, localizado na BR-163, próximo ao aterro sanitário, ele passa pela estação de tratamento, porém, as elevadas cargas de lançamento de esgoto deixam a água escura.
Mesmo em trecho de principal expressão da degradação do rio, o contato com a natureza proporcionado pela mata ciliar verde, mesmo em tempo de seca, é atrativo para quem quer lembrar de como é estar no campo.
Há poucos metros das margens do Anhanduí, é onde funciona o pesqueiro do casal Wadi Baganho, 39 anos, e Jaqueline Monteiro, 32 anos. Do portão para dentro, a impressão é de que estamos há bons quilômetros da cidade. Lagos artificiais assemelham-se a beiras de rio para atender o hobby de pescadores amadores ou o treino dos profissionais.
A escolha pelo local, há quase 20 anos, foi para manter na cidade o contato com o campo. Para Wadi o espaço tem ligação com lembranças de infância, quando o pai atuava como agrônomo em uma fazenda no interior do Estado. A conexão com a vida caipira se expressa nos animais para além dos peixes. “Temos cavalo, galinhas e até jacaré”, destaca o proprietário.
A poluição verificada nas proximidades do pesqueiro já foi problema maior para o casal. “Antigamente descia muito lixo. Eram garrafas pets e até bicho morto. Hoje o local está mais limpo”, garante Wadi.
Artéria hidrográfica prejudicada – Apesar de resistir, dificilmente o Rio Anhanduí vai voltar a ser o que já foi nos primeiros dias da existência de Campo Grande. A situação é demonstrada em diagnóstico do Programa Córrego Limpa desenvolvido pela Semadur (Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano) em parceria com a concessionária Águas Guariroba.
Mesmo com as ações aplicadas para melhorar a qualidade de água, a localização do rio dificulta a realização de medidas mais efetivas. Em alguns trechos, o nível de despoluição é registrado como regular. No entanto, a alta densidade populacional no entorno leva o rio a ser prejudicado com a poluição se comparado com outros da Capital, pois, recebe a drenagem das águas superficiais de todos os córregos que cortam a área urbana.
Principal curso d'água da cidade, o Rio Anhanduí é tributário do rio Pardo, que por sua vez, é afluente do rio Paraná. O rio nasce na região urbana central, na confluência dos córregos Segredo e Prosa, percorrendo em direção à região sul do município.
O Rio Anhanduí faz parte da microbacia do Anhanduí, que também abriga o Córrego Formiga. Esta microbacia possui uma importância especial pois recebe contribuição de quase todas as outras microbacias do município, sendo elas: Segredo, Prosa, Bandeira, Lageado, Imbirussu e Lagoa, tendo como exutório o Córrego Cachoeira, tendo no total 15 pontos de monitoramento.
O curso d'água que compõe a microbacia corta os seguintes bairros: Bandeirantes, Guanandi I e II, Jacy e parte dos bairros Planalto, Amambaí, Vila Carvalho, Glória, Monte Líbano, São Bento, Vilasboas, Jardim Nhanha, Jardim Paulista, Piratininga, Taveirópolis, Taquarussú, Jockey Club, Caiçara, Vila Marcos Roberto, Cohafama, Leblom, Tijuca, Aero Rancho, Parati, Pioneiros, Centenário, Batistão, Coophavilla II, Tarumã, Lageado, Los Angeles, TV Morena, América, Jardim Ouro Preto, Jardim Pênfigo, Jardim Colorado.
Localizado em região densamente povoada, o rio acaba recebendo elevada carga de lançamentos de esgotos clandestinos de residências. Além disso, concentram-se nesta microbacia sete estações elevatórias de esgoto, bem como o lançamento do efluente final da estação de tratamento de esgotos – ETE Los Angeles.
A análise dos resultados obtidos nos pontos de monitoramento desta microbacia indica que, certamente, trata-se da microbacia mais prejudicada em termos de qualidade da água se comparada às demais, isto porque, ela recebe contribuição de praticamente todas as outras, ou seja, recebe a drenagem das águas superficiais de todos os córregos que cortam a área urbana de Campo Grande, com exceção dos córregos da microbacia do Coqueiro, que não são afluentes do Rio Anhanduí.