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Reportagens Especiais

Após décadas de impunidade, assassinato de indígena encontra justiça no tribunal

Inédita, condenação do assassino do guarani-kaiowá Dorvalino Rocha marca história da luta indigenista em MS

Por Mylena Fraiha | 28/12/2023 07:03
Campo Grande News - Conteúdo de Verdade
Jovem indígena protesta com bandeira do Brasil, em área de disputa agrária em Mato Grosso do Sul (Foto: Iara Cardoso)
Jovem indígena protesta com bandeira do Brasil, em área de disputa agrária em Mato Grosso do Sul (Foto: Iara Cardoso)

Após anos de violência e impunidade, os povos indígenas de Mato Grosso do Sul finalmente tiveram um vislumbre de justiça em 2023. O vigilante João Carlos Gimenes Brito, acusado do homicídio do líder indígena guarani-kaiowá Dorvalino Rocha, foi condenado a 16 anos de prisão em um julgamento que se estendeu por dois dias no Fórum da Justiça Estadual de São Paulo, localizado em Presidente Prudente, a 432 km de Campo Grande.

Há alguns meses, venho fazendo a cobertura de casos sobre conflitos fundiários e direitos dos povos indígenas. O tema, no entanto, me interessa desde os tempos da faculdade, mas foi no meu primeiro ano de Campo Grande News que consegui acompanhar mais de perto, ouvir o que os indígenas têm a dizer sobre suas lutas e reivindicações.

Este veredicto histórico representa a primeira vez em que um assassinato de liderança indígena de MS obteve, de fato, uma resolução nos tribunais. Até então, nenhum dos casos havia recebido condenação por homicídio, conforme aponta o coordenador do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), Matias Benno Rempel.

Nessa estrutura agrária de Mato Grosso do Sul, a justiça é um delírio, um sonho distante que eles [indígenas] nunca alcançaram. Com Dorvalino, eles conseguiram as primeiras migalhas desse grande banquete chamado justiça. No entanto, conversando com as lideranças, chegamos à conclusão de que esse gosto é agridoce. Porque os mortos não levantam”, comenta Matias.

No dia 28 de novembro de 2023, João Carlos foi condenado a cumprir a pena em regime fechado, além de ser obrigado a realizar reparação econômica para os filhos da vítima. A sentença foi comemorada pelos indígenas da aldeia Nhanderu Marangatu, que estiveram presentes em frente ao Fórum durante todo o julgamento.

O caso ocorreu há 18 anos. Em uma tarde do dia 24 de dezembro de 2005, véspera de Natal, Dorvalino foi assassinado nas proximidades da porteira que dá acesso às fazendas Fronteira, Morro Alto e Cedro, localizadas próximo ao município de Antônio João, a 319 km da Capital.

Antes do incidente, ele estava indo colher mandioca para o almoço da família. Foi quando notou um carro vindo em sua direção. Quatro homens armados desceram do veículo, e o segurança disparou duas vezes, de acordo com testemunhas, “sem proferir uma palavra”. Um dos tiros atingiu o pé, enquanto o outro acertou o peito de Dorvalino.

Em 2006, a denúncia no caso de Dorvalino foi apresentada à Justiça Federal. Após a instrução do processo e acolhimento do caso, chegou a ser agendado o júri para o ano de 2019, quando veio o pedido de transferência para outro Estado, sendo definido o Fórum de Presidente Prudente. A solicitação ocorreu sob alegação de que a Justiça sul-mato-grossense tem a tendência de absolvição em crimes contra indígenas.

O juiz que conduziu o caso na cidade paulista, Cláudio de Paula dos Santos, autorizou que testemunhas de Antônio João fossem ouvidas por videoconferência, a partir da residência de representante da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) na cidade. Também foi autorizada a inclusão da viúva de Dorvalino, Líria Fernandes Rocha, a pedido do MPF (Ministério Público Federal), que compareceu presencialmente ao julgamento.

Após o veredicto, a viúva de Dorvalino, Líria Fernandes Rocha, expressou sua satisfação a um veículo da região de Presidente Prudente. “Eu toquei a família, dando força, dando suporte e mostrando que aquele território tem que ser demarcado, porque o Dorvalino morreu, ele deu a sua vida pela terra e, com a família, eu prossegui na caminhada, querendo a demarcação da minha própria terra como comunidade indígena”, disse à TV Fronteira.

Indígenas de Nhanderu Marangatu estiveram em julgamento de assassinato de Dorvalino, em Presidente Prudente (Foto: Arquivo/Cimi)
Indígenas de Nhanderu Marangatu estiveram em julgamento de assassinato de Dorvalino, em Presidente Prudente (Foto: Arquivo/Cimi)

18 anos para uma decisão - A morte do líder indígena ocorreu dez dias após ele e seu povo serem despejados da área indígena Nhanderu Marangatu, por determinação do presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) da época, o ministro Nelson Jobim.

Ou seja, Dorvalino não estava apenas de passagem pelo local. Há anos, os indígenas da Nhanderu Marangatu ocupavam a fazenda em períodos alternados, com cabanas, plantação e caça de pequenos animais. O grupo, composto por cerca de 700 indígenas, acreditava que as ocupações poderiam acelerar o processo de demarcação da fazenda como terra indígena.

Em 2006, o procurador da República na região de Dourados, Charles Pessoa, solicitou a abertura de um inquérito para investigar o crime. A assessora jurídica do Cimi e assistente de acusação no julgamento, Caroline Hilgert, explica que a denúncia do MPF (Ministério Público Federal) foi facilitada pela confissão do atirador.

Ele afirmou que agiu sozinho. Ao longo do tempo, ele foi mudando as versões, mas admitiu que havia efetuado o disparo. Isso facilitou a denúncia do Ministério Público Federal”, explica Caroline.

A partir disso, a disputa pela narrativa dos fatos emergiu, com João Carlos alegando emboscada por indígenas, enquanto os guarani-kaiowá afirmavam que Dorvalino foi morto desarmado. Entretanto, ao término de um extenso inquérito policial, os investigadores concluíram que o segurança havia cometido homicídio doloso, ou seja, com a intenção de matar.

Para chegar no veredicto final, foram 18 anos de idas e vindas nos tribunais. Segundo Caroline, a demora na resolução de casos como esses em Mato Grosso do Sul é agravada pela influência dos fazendeiros na região e na burocracia.

"Nessa época, os processos eram todos físicos, só em papel. E de alguma forma os fazendeiros controlam a região e até mesmo os cartórios. São poucos os assassinatos que viram um processo jurídico, com uma investigação séria e um desfecho”, relembra a assessora jurídica do Cimi.

Ela ressalta que no julgamento do assassinato de Dorvalino, o desaforamento, ou seja, a transferência de um processo de um tribunal para outro, também contribuiu com a demora do processo jurídico. “Nesse caso, foi necessário o desaforamento e isso já toma algum tempo. Em 2018, houve a decisão de pronúncia e só depois disso é possível fazer o procedimento de desaforamento. Nisso, o processo vai e volta entre os tribunais”, explica Caroline.

Fachada do Fórum de Presidente Prudente, onde ocorreu julgamento sobre o assassinato de Dorvalino Rocha (Foto: Arquivo/Cimi Regional MS)
Fachada do Fórum de Presidente Prudente, onde ocorreu julgamento sobre o assassinato de Dorvalino Rocha (Foto: Arquivo/Cimi Regional MS)

Apesar da distância, Caroline aponta que o julgamento em Presidente Prudente reuniu familiares de Dorvalino e outros indígenas de Nhanderu Marangatu. “Algumas testemunhas já tinham morrido, mas outras não, e estas foram fundamentais. No julgamento, toda a comunidade estava lá, além da família de Dorvalino”.

Além disso, ela destaca que, embora tardia, a decisão representa um marco histórico na luta indigenista em Mato Grosso do Sul. "Foi a primeira condenação por assassinato. No caso de Marçal [de Souza], os jurados absolveram os responsáveis. Quando o caso foi para a Justiça Federal, já havia prescrito. No caso de [Marcos] Verón, os réus foram condenados por várias acusações, inclusive tortura, mas não por homicídio. Agora, pela primeira vez, temos uma condenação por homicídio".

A condenação do assassino Dorvalino não se limita apenas ao contexto dos povos indígenas. Matias destaca que esta foi também a primeira condenação por uma morte ocorrida no âmbito do conflito agrário no Estado.

Pessoas sem terra, quilombolas e outros companheiros e companheiras, que estão excluídas pela ganância do agronegócio, também enfrentam destinos semelhantes. A decisão também projeta para o futuro uma esperança de que haverá punição para os próximos casos. A mão que puxa o gatilho não ficará mais impune”, reitera o integrante do Cimi-MS.

Mortes e impunidades - Além de Dorvalino, vários homens e mulheres indígenas tombaram sem ver seus territórios tradicionais demarcados. Um deles foi o líder guarani-nhandeva, Marçal de Souza, que há 40 anos foi assassinado na mesma região que Dorvalino, porém na TI (Terra Indígena) Pirakuá.

Sua morte representou um evidente ato de silenciamento, marcada por cinco tiros, um deles atingindo diretamente a boca. No início dos anos 70, Marçal dedicou-se a denunciar a invasão de terras indígenas, a exploração ilegal de madeira, a escravização de indígenas e o tráfico de meninas indígenas.

Marçal de Souza em encontro com o Papa João Paulo II (Foto: Arquivo/Cimi)
Marçal de Souza em encontro com o Papa João Paulo II (Foto: Arquivo/Cimi)

Marçal alcançou renome internacional ao apresentar ao Papa João Paulo II denúncias sobre a violência perpetrada contra os povos indígenas. Entretanto, nos anos 80, sua figura incomodou o fazendeiro Astúrio Monteiro de Lima e seu filho Líbero Monteiro, conhecidos na região de Antônio João.

Os acusados de serem mandantes, Líbero Monteiro e Romulo Gamarra, foram a julgamento dez anos após o crime, mas foram absolvidos. Em 2008, o crime prescreveu, e nenhum responsável foi identificado. Postumamente, Marçal de Souza foi reconhecido como Herói Nacional do Brasil.

Marcos Verón em frente a uma ocupação de guaranis-kaiowá, em Juti (Foto: Arquivo/Cimi)
Marcos Verón em frente a uma ocupação de guaranis-kaiowá, em Juti (Foto: Arquivo/Cimi)

Passados 20 anos, foi assassinado o kaiowá Marcos Verón, em janeiro de 2003, com 72 anos de idade. O líder passou a vida tentando recuperar a terra, que teve boa parte da floresta desmatada, na área chamada de Taquara, em Juti.

Em abril de 1997, Verón levou sua comunidade para a fazenda, mas a Justiça ordenou a saída do grupo, em outubro de 2001, policiais fortemente armados e soldados obrigaram os índios a abandonar a terra mais uma vez. Então, eles passaram a viver sob lonas de plástico às margens da rodovia.

Segundo o MPF, na madrugada de 13 de janeiro de 2003, os agressores atacaram o acampamento a tiros. Sete indígenas foram sequestrados, amarrados na carroceria de uma camionete e levados para um local distante da fazenda, onde foram submetidos a uma sessão de tortura.

Um dos filhos de Verón, Ládio, quase foi queimado vivo. A filha dele, Geisabel, grávida de sete meses, foi arrastada pelos cabelos e espancada. Marcos Verón, na época com 73 anos, foi agredido com socos, pontapés e coronhadas de espingarda na cabeça, vindo a falecer em decorrência de traumatismo craniano.

Somente em fevereiro de 2011, o júri popular proferiu a sentença de 12 anos e três meses de prisão para Estevão Romero, Carlos Roberto dos Santos e Jorge Cristaldo Insabralde, por tortura e sequestro. No entanto, os três foram inocentados da acusação de assassinato do líder kaiowá-guarani.

Criança indígena ao lado de local onde Marcos Verón foi sepultado, em Juti (Foto: Arquivo/Cimi)
Criança indígena ao lado de local onde Marcos Verón foi sepultado, em Juti (Foto: Arquivo/Cimi)

Seis anos após o falecimento de Verón, um novo confronto resultou no “desaparecimento” dos professores guarani-nhandeva Genivaldo Vera e Rolindo Vera, em outubro de 2009. O corpo de Genivaldo foi encontrado no dia 7 de novembro daquele ano, preso ao galho de uma árvore, no córrego Ypoi, em Paranhos, município na fronteira com o Paraguai, a cerca de 469 km da Capital. O corpo de Rolindo nunca foi encontrado.

No dia 7 de dezembro deste ano, após 14 anos, a Justiça Federal de Ponta Porã determinou que fazendeiros e um ex-candidato a prefeito de Paranhos sejam levados a júri popular pelas mortes dos primos Jenivaldo Vera e Rolindo Vera. Nesse intervalo, dois crimes prescreveram: disparo de arma de fogo e ocultação de cadáver. O denunciado Moacir João Macedo, ex-vereador e ex-presidente do Sindicato Rural de Paranhos, faleceu.

Túmulo de Jenivaldo Vera, que desapareceu durante conflito e corpo foi achado em rio (Foto: Divulgação/MPF)
Túmulo de Jenivaldo Vera, que desapareceu durante conflito e corpo foi achado em rio (Foto: Divulgação/MPF)

Os réus Evaldo Luiz Nunes Escobar, Joanelse Tavares Pinheiro, Antônio Pereira, Fermino Aurélio Escobar Filho e Rui Evaldo Nunes Escobar enfrentarão julgamento por homicídio qualificado, com agravante de recurso que dificultou a defesa das vítimas. A sentença de pronúncia, assinada pelo juiz federal substituto Ricardo Duarte Ferreira Figueira, foi publicada no Diário da Justiça em 7 de dezembro de 2023.

Conforme noticiado anteriormente, Evaldo, Fermino e Rui são filhos dos proprietários da Fazenda São Luiz. Joanelse foi candidato a prefeito de Paranhos em 2004, enquanto Antônio era comerciante à época da denúncia.

Protesto cobrava paradeiro de Rolindo Vera, que desapareceu em 2009 (Foto: Arquivo/Campo Grande News)
Protesto cobrava paradeiro de Rolindo Vera, que desapareceu em 2009 (Foto: Arquivo/Campo Grande News)

Em junho deste ano, o Ministério dos Povos Indígenas anunciou o envio dos processos para demarcação de 13 terras indígenas, incluindo o território Ypoi Triunfo, habitado pela etnia guarani-nhandeva, área que era reivindicada pelos professores Genivaldo e Rolindo.

Para mim, como jornalista, é uma honra poder presenciar feitos históricos como essa primeira condenação, a criação do Ministério dos Povos Indígenas e a memória de Marçal viva, mesmo após 40 anos de sua morte.

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