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A reescrita da história

Alecsandra Matias de Oliveira (*) | 17/10/2020 14:27

Precursora de uma geração, Rosana Paulino abre espaço a pesquisadores e artistas preocupados com demandas étnico-sociais. Em cerca de 30 anos de percurso, ela cria uma agenda de ações que contribui para uma nova visualidade que envolve ancestralidade, afetos e femininos. Questionadora, Paulino joga com memórias, técnicas, recombinações de imagens e palavras. Assim, ela regressa à “história” (as aspas justificam-se porque não é qualquer história, mas aquela instituída pela sociedade branca e patriarcal). E, dessa forma, fomentado por seus trabalhos, um campo de novas investigações se coloca em pauta hoje.

O interesse pela arte, nascido na infância através das brincadeiras com argila, cola, tesoura e papel, é, mais tarde, amadurecido na Escola de Comunicações e Artes da USP, nos estágios e bolsas em importantes instituições internacionais. Percebendo a arte como “algo sincero”, Rosana ousa quando pende às memórias, às preocupações, às técnicas e aos materiais que lhe são caros, discutindo de modo denso uma história de exclusão. Das técnicas mais simples às inovadoras, suas narrativas tencionam os limites da história; aquilo que fica escondido. Ao empregar o desenho, a gravura, a tecelagem e a fotografia (vistas como “pequenas múmias”, ou ainda “visões arqueológicas”), aponta a condição da mulher, o passado colonial e, acima de tudo, a escravidão – mácula que ainda nos assombra.

Na “história oficial”, a mulher negra ocupa a base da pirâmide; aquela destinada aos papéis subalternos e à violência cotidiana. É justamente pelas mãos de uma mulher negra que esse discurso de expropriação é denunciado. Não por acaso, a obra de Rosana Paulino recebe diversas análises de críticos de arte e historiadores. Essas pesquisas reverberam na academia, mas também no circuito internacional das artes. Nesse ponto, faz-se menção às grandes exposições e às últimas retrospectivas, nas quais suas obras evidenciam o processo de descolonização dos acervos e a abertura à diversidade social.

Na Bienal Mercosul 12, Paulino tem um lugar destacado: oito trabalhos estão sendo expostos de modo virtual, face à pandemia, são eles: Série carapaça de proteção (2003), Parede da memória (1994-2015), Série tecelã (2013-2014), As filhas de Eva (2014), ¿Historia natural? (2016), Paraíso tropical (2017), A geometria à brasileira chega ao paraíso tropical – azul (2017-2018) e A geometria à brasileira chega ao paraíso tropical – amarelo (2017-2018). Ressalte-se que uma das lives mais concorridas do evento ocorre no mês de julho, com a artista e o curador do programa educativo Igor Simões. Não caberia aqui a análise sobre cada obra, mas, confessemos: a tentação é grande! São trabalhos com diversas camadas de leituras e desdobramentos reflexivos. Fiquemos a meio caminho do risco, abrindo, então, espaços para alguns deles e que nos apoiam no entendimento do seu repertório e “fazer artístico”.

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Em Parede da memória (1994-2015), a artista monta um “álbum de família” impresso sobre patuás. Aos espectadores coloca-se uma árvore genealógica – uma tentativa de reconstruir sua identidade a partir da ancestralidade. Aos afrodescendentes, põe-se uma questão-chave: a diáspora rompe com os laços familiares e a reconstrução dessa linha condutora torna-se relevante para esse indivíduo. Nesse mural, a linhagem ancestral define o presente ou ainda constrói a identidade negra de grande parte da população brasileira. Paulino ainda nos chama a atenção para o impacto da obra no espaço expositivo: os retratos e, sobretudo, os olhos dos retratados ecoam a mensagem de que “é possível ignorar um olhar, mas não milhares deles”.

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No trabalho As filhas de Eva (2014), a artista emprega técnicas mistas sobre papel azul para recriar imagens de africanos e sombras que evocam os pretos novos (escravos recém-chegados que pereciam face aos maus tratos da viagem no navio negreiro). Nessa imagética, remete-se a origem da flora e fauna brasilis e coloca o negro “como o natural da terra”, ou seja, nada mais do que mais um elemento da fauna exótica (retira-lhe a humanidade) – esse questionamento salta aos olhos das leituras mais apuradas. O título do trabalho nos faz lembrar que todas as mulheres, inclusive as negras, são “filhas de Eva”– a primeira a provar do fruto do saber e, por consequência, ser expulsa do Paraíso.

¿Historia natural? (2016 – assim mesmo como dúvida e em espanhol) é um livro de artista com 12 pranchas que se remete aos volumes enciclopédicos – reconhecidos pela tentativa de ordenação dos reinos animal e vegetal. Motivada por entender a lógica colonialista, Paulino dedica-se à pesquisa das teorias da classificação das raças; subverte e sutura imagens e argumentos, mostrando o avesso desse discurso – tudo isso por uma ótica suave. Através da gravura e das colagens, a artista oferece imagens borradas, sujas e suturadas como se nos mostrasse que aquela história, legitimada pelo discurso moral, religioso e pseudocientífico, é falsa; tornou-se grande trapaça.

Já em A geometria à brasileira chega ao paraíso tropical – azul (2017-2018) e A geometria à brasileira chega ao paraíso tropical – amarelo (2017-2018) um cânone da história da arte é questionado: que “vocação à geometria” é essa que nos conta o abstracionismo e o concretismo nacional? Nesse espectro de indagação, os dois trabalhos trazem imagens da exuberante natureza tropical e da iconografia de homens e mulheres negros do século XIX, em geral, em preto e branco, com interferências de figuras geométricas em cores fortes – essa associação torna-se inquietante pelo contraste visual. No fundo, explicita a ironia de um país que se pretende “moderno”, mas que excluiu sua natureza e sua história.

Assim sendo, sua mais recente pesquisa ameaça o conceito de “ciência” e de “história” dos séculos anteriores; desvela o pensamento de exclusão e violência presente entre nós. Insere nas “imagens duras” a exuberância da natureza do Novo Mundo. Em suas imagens, a “fotografia antropológica”, o registro da fauna e da flora da “nova terra”, as suturas grosseiras e as colagens desconcertantes contam sobre as memórias silenciadas pela história oficial.

Compreende-se, então, que a releitura se desdobra em reescrita da história, instrumentalizada por suas investigações e de outros artistas que discutem, com rigor e poesia, o imaginário e a memória nacional – que devem conter não somente a “história dos vencedores”, mas a de todos os agentes sociais deste país (incluindo autoria e representação das mulheres negras). Por fim, reforça-se a convicção de que as obras de nossa artista são inspiradas pelo espírito inquieto; elas borram as fronteiras do universo das galerias, museus e grandes eventos dedicados à arte, chegam às nossas vivências cotidianas – uma bela lição de arte e afetos.

(*) Alecsandra Matias de Oliveira é doutora em Artes Visuais pela ECA/USP, membro da ABCA e pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes

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