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Bruno e Dom

Janice Theodoro da Silva(*) | 19/06/2022 08:38

Comoção nacional com o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips. Este é o fato. O que nos comove? A floresta devastada? Os povos originários? A ausência do Estado? A morte de Bruno? A morte de Dom?

A comoção, assim como o amor, a generosidade, o respeito e tantos outros sentimentos, tem origem na identidade, na capacidade de se sentir igual ao Outro. A identidade se faz acompanhar da pergunta: Podia ser eu? Tenho identidade com ele, Bruno, antropólogo, e com Dom, jornalista. Quanta coragem, quanta qualidade humana Bruno e Dom expressam.

Hoje, os povos originários e a floresta repercutem no coração de muita gente, especialmente no coração dos jovens. Identidade é a palavra.

Um pouco de história

Em 500 anos de história e, 200 anos de país independente, nós, brasileiros, não fomos capazes de compor um tecido social com lugar para populações originárias, com seus usos e costumes.
Quais foram as políticas de Estado desenvolvidas com relação às populações indígenas?

Do século 16 até o século 19 as políticas se caracterizaram pelo extermínio das populações originárias e, em alguns casos, integração mediante a apropriação de suas terras, seguida de escravidão e conversão forçada. A ideia de progresso e modernização, com foco em uma forma de vida denominada “civilizada” (Ocidente civilizado), justificou a destruição de inúmeras comunidades indígenas favorecendo sua marginalização e pauperização.

No século 20 as políticas levadas à frente pelo Estado colocavam os povos em situação inferior. Eram tutelados pelo Estado, dispondo de poucos mecanismos para preservar sua cultura. Somente com a constituição de 1988 a condição de povos tutelados foi alterada, dando-se a eles a cidadania necessária para a atuação política em razão dos seus próprios interesses.

O golpe civil-militar de 1964 manteve como política voltada para os povos originários a integração destas populações ao território nacional, mediante a imposição de usos e costumes, próprios das tradições Ocidentais. Os indígenas eram tutelados pelo Estado e considerados incapazes de gerenciar a vida de suas comunidades e preservar o território brasileiro.

O Estado brasileiro na época da ditadura militar (1964-1988), diferentemente do Chile e da Argentina, desenvolveu um instrumento peculiar para combater opositores: uma legalidade autoritária, especializada em utilizar instrumentos administrativos para isolar, desempregar e silenciar pessoas. O Estado escolheu como tática política, para alcançar seus objetivos, o Direito Administrativo, adequando-o para aplicações da lei de forma legal, mas ilegítima. Anthony Pereira, em seu livro Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, Chile e na Argentina, analisou, em detalhe, a questão.

A forma de atuação do Estado brasileiro, legal, mas ilegítima, não eliminou mortes e desaparecimentos, uma estratégia complexa e de grande importância foi arquitetada para combater e silenciar a oposição a curto, médio e longo prazo. Os instrumentos, então desenvolvidos pelo Estado brasileiro, para combater as oposições têm se demonstrado adequados, hoje, para corroer as estruturas dos Estados Democráticos de Direito. Trata-se do vírus que corrompe as democracias.

Agencias de informação

No Brasil da década de 70, coube as agências de informação mapearem com precisão pessoas e instituições capazes de desfavorecer, de colocar em questão as políticas em curso, desempenhadas pelo governo militar.

A política levada à frente pelo regime autoritário instalado com o golpe de 1964 mantinha a aparência de legalidade, favorecendo uma narrativa de que toda a ação do Estado era legitima. Nos anos 1960 e 70, os instrumentos utilizados para perseguir e desmobilizar os opositores ao regime militar iam desde: a ausência de verba para um contrato, passando pela lei eleitoral, pela suspensão das propostas de contratação, até a supressão de determinados contratos temporários, a morosidade no andamento de processos até o decurso de prazo para a sua implantação, entre outros. Analisei muitos processos destes tipos, ao realizar os relatórios da Comissão da Verdade da USP.

Foram rastreados, nos Arquivos do DOPS e Arquivo Nacional, os informes do Serviço Nacional de Informações (SNI), onde observamos a montagem de um Serviço de Inteligência com dimensões nacionais, do qual faziam parte Exército, Marinha e Aeronáutica. Os instrumentos mobilizados na perseguição legitimavam o ato arbitrário em sua gênese, sob roupagens aparentemente legais, que visavam à obtenção e a concordância da sociedade, favorecendo a consideração de que se estaria diante de um Estado em perfeito funcionamento institucional.

A exoneração de Bruno

A exoneração de Bruno da Funai, o seu assassinato com Dom Phillips e o desmonte planejado de inúmeras instituições públicas, voltadas para o meio-ambiente, chamaram a minha atenção de historiadora.

A clareza de propósitos do governo atual, a eliminação ou retirada da floresta das populações indígenas, com vistas a uma integração forçada dos povos originário, são exemplos de práticas que estão em curso com base em mecanismos anteriormente utilizados.

Quais são os mecanismos utilizados para a obtenção destes resultados?

Elaboro algumas hipóteses, depois de muitas leituras de antigos documentos. Velho hábito de historiadores.

Em época de guerra, uma das importantes linhas de ação para abater o inimigo é o controle das linhas de abastecimento e o incentivo aos conflitos entre opositores. Observem:

1. Controle da pesca e mineração em terras indígenas pode ser útil. Sem peixes e sem caça, as comunidades de índios isolados não vivem;
2. O mercúrio nas águas dos rios prejudica a saúde dos indígenas justificando deslocamentos de populações originárias de áreas contaminadas;
3. Sem demarcação de terras ou sem floresta em pé os povos originários não vivem, morrem.

Como um Estado de Direito, respeitando a constituição, que garante o direito dos indígenas às suas terras, pode atuar de forma legal, mas ilegítima, para excluir da floresta os povos originários, os antropólogos, os jornalistas e as instituições voltadas para a sua preservação?

Diminuindo a comida, estimulando os conflitos e o medo. Como?

1. Fazendo vista grossa para o crime organizado e para os conflitos gerados entre a população pobre e ribeirinha com os indígenas, atendendo-se com isso poderosos interesses locais vinculados, no caso em questão, à pesca ilegal.
2. Contaminando os peixes. Como? Fazendo vista grossa para as dragas, para o uso do mercúrio e deixando de vigiar a extração ilegal do ouro.
3. Deixando para o legislativo a decisão entre queimar ou devolver ao praticante do crime os objetos utilizados na extração do ouro, de grande valor na região, sem que haja autorização para, por exemplo, a queima de dragas, motores, motos utilizadas para levar gasolina e outros produtos necessários para a prática de ilícitos para garantir a repetição do crime.

Mais uma vez, na história brasileira, encontra-se uma forma de atuação legal, mas não legítima.

Enfraquecimento das instituições voltadas para o meio-ambiente

Como os objetivos são alcançados?

Desqualificando, retirando das instituições, exonerando, indivíduos atuantes na preservação do meio-ambiente, na saúde e na educação. O procedimento envolve também acirrar as contradições, no interior das instituições, mediante troca de cargos e reorganização da hierarquia, colocando pessoas experientes sob o comando de indivíduos desligados ou contrários aos objetivos das instituições. É legal. Mas, não é justo, nem legitimo. Serve aos objetivos maiores do governo em questão.

Tudo isto já ocorreu no Brasil, a partir de 1971, quando foi criado um Plano Setorial de Informações. A diferença é que naquela época, em razão dos Atos Institucionais e de não haver Habeas Corpus, o executivo dispunha de maior facilidade para a manipulação dos instrumentos legais (mas ilegítimos) para chegar aos seus objetivos.

Agora, em época de pleno funcionamento do Estado de Direito, a estratégia do governo tem, como foco, o acirramento das contradições entre os povos indígenas, os pescadores, os caçadores, os garimpeiros e os madeireiros, destruidores dos rios e florestas com participação do legislativo. Objetivo: controle à sua moda do território e das populações indígenas evitando a participação da sociedade civil.

Para alcançar estes objetivos os instrumentos são:

A fome é arma de guerra.

A ausência de combate ao crime organizado é arma de guerra.

O desmantelamento das instituições voltadas para a preservação das vidas e da floresta, mediante a desmoralização e a desarticulação das (raras) pessoas movidas pela coragem e integridade ética capazes de lutar pelos povos originários e pela floresta. Esta é a mais possante arma de guerra.

A comoção, fruto de identidade com Bruno, Dom e povos da floresta, no Brasil e no exterior, é gota de esperança por um mundo melhor.

Para Bruno e para Dom, com carinho.

(*) Janice Theodoro da Silva é professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

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