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Conflitos entre poderes e crise institucional

Rodrigo Valin de Oliveira (*) | 16/08/2021 13:30

São abundantes os relatos sobre atritos entre os três poderes no Brasil de hoje. Incontáveis querelas ocupam o centro dos acontecimentos em nossa vida política. Formaram-se correntes de opinião, facções e, em alguns casos, exaltadas torcidas. O risco de ruptura da democracia, nesse quadro, já não é mera ficção, considerando-se as ameaças que se formulam. Superar tal estado de coisas exige, em nosso entendimento, a adequada compreensão da natureza da crise que vivenciamos. Trata-se, em essência, de amplo desajuste institucional.

O princípio da separação de poderes, em sua concepção, estimula certos atritos entre legislativo, judiciário e executivo. Não fosse assim, não existiriam nem fiscalização recíproca nem controle efetivo do poder, sempre propício a excessos. Interferências de um poder na esfera de ação de outro poder, como sustentou “O Federalista”, são tanto permitidas como desejáveis, pois concretizam um importante desígnio do constitucionalismo de primeira geração (constitucionalismo liberal): a limitação do poder.

O que é inaceitável, ensina ainda “O Federalista”, é o fato de um poder tomar o lugar do outro. Vale dizer:  a um poder não é permitido assenhorar-se completamente das funções ou atividades de outro. Se um poder sobrepõe-se a outro, restam configuradas tendências autocráticas. Na lição do Professor Dalmo Dallari, “o sistema de separação dos poderes, consagrado nas Constituições de quase todo o mundo, foi associado à ideia de Estado Democrático (…).”

As dificuldades surgem, exatamente, na hora de diferenciar interferências parciais (concebíveis) de usurpações (execráveis).

A separação de poderes nasceu em um momento histórico específico em que se pretendia reduzir a atuação do Estado; hodiernamente, as funções do Estado são cada vez mais amplas, exigindo-se colaboração entre os poderes. O dogma da supremacia do poder legislativo não resistiu ao fortalecimento do poder executivo e de suas políticas sociais. Registre-se, ademais, a ampliação da função jurisdicional (típica do Judiciário), cujo ativismo, concreto ou potencial, abalaria o próprio Montesquieu.

Vivemos a era dos direitos humanos e fundamentais, o que o Estado moderno não pode ignorar. Multiplicam-se os poderes: Tribunal Constitucional, Chefia de Estado, Ministério Público e Administração Pública passam a integrar o esquema da separação, fazendo da tripartição uma ideia obsoleta. A demanda por participação política dos diversos atores democráticos cresce e, em muitas oportunidades, põe em xeque a democracia indireta ou representativa. Desenha-se, assim, o retrato perfeito da crise, uma vez que continuamos a pensar os conflitos entre os poderes na moldura ultrapassada do Estado Liberal Clássico.

No Brasil, especialmente, minimiza-se a dimensão institucional da crise entre os poderes. Muitas análises limitam-se aos desdobramentos morais dos conflitos. Parece ser mais importante, nesse infeliz viés comportamental, a psicologia dos diversos atores: tendências autoritárias, exageros ativistas ou corrupção do caráter.

Para superar tal panorama (falta de imaginação institucional e desenfreado moralismo), a única alternativa é reformar as instituições.

Assiste razão ao jurista Maurizio Fioravanti ao afirmar que uma constituição não é democrática somente por seu fundamento popular ou sua derivação de uma assembleia constituinte, mas em razão da mediação pacífica dos conflitos, capaz de tutelar a estrutura plural de um país. A nova supremacia da Constituição, por conseguinte, tem por causa a necessidade de definir limites seguros às pretensões das maiorias.

Nossa engenharia institucional exige novas linhas organizativas. A distinção entre chefia de estado e chefia de governo, no contexto de um novo sistema de governo (o parlamentarismo), revelar-se-ia fundamental para a resolução de conflitos, uma vez que permite o exercício de função arbitral pelo Presidente da República. De igual modo, a redução do número de partidos políticos, propiciada por um sistema eleitoral mais racional, melhoraria as relações entre executivo e legislativo. O sistema eleitoral majoritário (puro ou misto) confere estabilidade ao governo (um número menor de partidos compõe a maioria parlamentar) e permite aos eleitores o controle efetivo sobre os representantes, além de reduzir os custos da campanha eleitoral, de modo a represar a corrupção. A criação de um Tribunal Constitucional, por fim, com a adequada separação entre a jurisdição constitucional e a jurisdição comum, racionaliza a administração da justiça.

Reza o relato medieval que Santo Antônio, ao ser hostilizado pelos homens na hora de sua pregação, desceu de seu púlpito e, na beira d’água, passou a pregar aos peixes. Esses animais, por ordem de tamanho, teriam posto a cabeça para fora, com o objetivo de ouvir as palavras do franciscano. Na política do Brasil de hoje, não podemos realizar grandes milagres nem mudar os destinatários da Constituição. Para enfrentar os inúmeros conflitos, logo, importa o pequeno milagre de repensar as instituições.

(*) Rodrigo Valin de Oliveira é professor do Departamento de Direito Público e Filosofia do Direito da UFRGS.

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