Declínio e queda de um mito
Os deuses e heróis da mitologia grega quase sempre são arrogantes, cruéis e um bocado tresloucados, mas nunca são desprovidos de inteligência. Com a exceção apenas de Ares, o deus da guerra.
Se o mito de fato é o nada que é tudo, como queria Fernando Pessoa, Ares não compartilha dessa imagem, pois ele é o Nada absoluto. Mesquinho, vil e ignorante, é a própria personificação daquilo que um mito não é, daquilo contra o que o mito resiste, a saber, o Caos. O mito, por excelência, é a vitória da Ordem sobre o Caos, não da “ordem e progresso”, bem entendido, mas daquilo que no sentido cosmogônico representaria o equilíbrio do universo e, por conseguinte, na medida em que o mito se projeta para dentro de cada um, do equilíbrio humano. Ares, no entanto, é um ser desequilibrado. E destruidor. Apesar de viver bravateando seu olímpico histórico de atleta (fato, talvez, que fez Afrodite, a bonitinha da mitologia, cair nas suas graças – só não sabemos se pelo histórico ou pela bravata), Ares é um deus covarde, no sentido etimológico de que a coragem provém do coração, o que ele não tem. Também não tem cérebro.
Esse ser “fanfarrão, estúpido e ridículo”, conforme a descrição de Menelaos Stephanides, está sempre acompanhado de seus filhos Deimos (o medo) e Fobos (o terror), os dois tão desprezíveis quanto ele. Quando não estão matando gente ou perseguindo incautas ninfas (às vezes, jovens mancebos), essa dupla gosta de posar para selfies fazendo o sinal de Ares com as mãos, um círculo e uma seta em diagonal apontando para cima – como um órgão genital masculino visto de lado com o pênis ereto –, respectivamente o escudo e a lança de Ares, símbolos, por assim dizer, da brutalidade machista. Com isso desde sempre atraíram a atenção de Hefesto, o fabricante de armas do mundo antigo. Tão grande era a demanda que, dizem, Hefesto pensou até em abrir uma filial de sua oficina na Trácia. (Dizem também que havia um outro motivo, que Hefesto estava apaixonado por Afrodite, mas essa é outra história…) Ares com certeza representava um cliente entusiasmado e um investimento seguro com lucro fácil.
Os deuses do Olimpo, porém, não o viam com tão bons olhos, por isso o evitavam, sendo encarado por todos da mesma forma que o Stanislaw Ponte Preta considerava seu primo Altamirando, o abominável parente. E isso nem tanto por sua crueldade e violência, já que os deuses gregos eram todos bem violentos quando queriam ser. O caso é que Ares era muito burro, e um adorador de armas com pouca ou nenhuma inteligência sempre podia representar um perigo real e imediato, mesmo para os deuses do Olimpo. Por isso foi preciso eleger um deus da guerra alternativo, uma deusa, melhor dizendo. Atena é a antítese de Ares: inteligente, sensata, complacente. Sobretudo, pacífica. É a deusa da guerra e da sabedoria. Também é a protetora das ciências, da tecnologia e das artes. Foi ela que mostrou aos homens o benefício do arado e que ajudou o titã Prometeu, aquele que roubou o fogo de Zeus e o entregou aos mortais, a criar a primeira mulher. Se um trabalhador qualquer, de qualquer estirpe, precisasse de ajuda, ou mesmo um herói em dificuldades, era a ela que devia recorrer.
Ares, por outro lado, desprezava as ciências, as artes e as mulheres com a mesma arrebatada paixão com que impunha sua barbárie ao povo e à natureza. Era um deus inescrupuloso e sem nenhum senso de justiça, o que pode parecer contraditório já que o supremo tribunal grego levava o seu nome, mas o Areópago (as Colinas de Ares), em Atenas, onde sua rival era soberana, fora criado exatamente para que ali pudessem ser julgados os seus crimes. E estes eram muitos, de A a Z. Infelizmente, sendo filho de Zeus e de Hera, tinha as costas quentes, e não podiam simplesmente eliminá-lo, como aliás ele costumava fazer com seus inimigos. Atena, mais que todos os outros deuses, sabia muito bem disso, pois desde a Guerra de Troia estava cansada de desviar as flechas que Ares lançava a torto e a direito apenas pelo execrável prazer de verter sangue.
O jeito, ponderou o divino conselho reunido no Areópago, seria mantê-lo a distância, nalgum lugar remoto e periférico, onde, estranhamente, houvesse quem o adorasse. A Trácia, sua terra natal, parecia um bom lugar. “Se nesse país, ao contrário do resto do mundo, gostam dele”, arguiu a ajuizada guerreira, “que fique por lá então”. Assim foi feito e, por muito tempo, Ares e os filhos dominaram aquela região com a estupidez e o ímpeto destrutivo que lhes eram peculiares.
Mas como tudo tem um limite, até para os mitos, houve um momento em que as coisas na Trácia não iam nada bem. O povo sucumbia vitimado por doenças, fome e desemprego, e a cada dia aumentava o descontentamento geral. Seu rei e deus protetor, no entanto, não estava nem aí, quando muito lastimava a perda de um de seus odiosos acólitos militares, pois a morte, ele bem sabia, levava a todos, indistintamente, menos a ele e a sua família, claro, posto que eram imortais. Enquanto o mundo que habitavam virava pó, aproximando-se a terra ao reino subterrâneo, sua linda esposa não saía dos shoppings, atrás de túnicas de Atenas, sandálias de Corinto e braceletes de Argos, o centro da moda grega, e seus tenebrosos herdeiros adquiriam mansões com vista para o Helesponto, e assistiam ao BBB21.
Naquela tarde, quando Afrodite punia um escravo por ter deixado cair uma ânfora caríssima, e os dois pimpões se empanturravam de néctar e ambrosia na sala de TV, Ares chegou em casa mais furioso do que nunca. Não bastasse Atena novamente tê-lo impedido de estripar uma anciã que deixara de lhe prestar uma correta homenagem, alguns tracianos andavam conspirando contra a fé e os bons costumes, motivados pela leitura de uns certos pergaminhos subversivos; sendo encabeçada, essa corja, por um tal de Demócrito de Abdera.
Deimos, diante da figura colérica do pai, imediatamente desligou a TV. Só podia ser coisa de comunista, garantiu, deixando escorrer um pouco de néctar pelo chão. Fobos, que tinha frequentado aquela região de Abdera, um lugarejo mequetrefe na periferia da Trácia, enrabichado na época por uma centaura de linda cauda esverdeada, estranhou o comentário do irmão, pois, até onde sabia, Demócrito era atomista. “Atomista, comunista, nazista… é tudo a mesma coisa”, disse Deimos. Fobos ficou em dúvida: “Então eles também odeiam judeus?”.
Ares não queria saber daquela conversa efeminada, então bateu a empunhadura de sua lança no chão e vociferou que ter ódio é bom, o ruim é a leitura! “Essa história de colocar a razão acima da crença nos deuses é um perigo”, prosseguiu, ainda mais furioso. “Aqui não tem esse negócio não, aqui é fé cega e faca amolada!”. Um pouco gaguejante, Deimos sugeriu que o vagabundo fosse entregue àquele torturador amigo da família. “Sem chance”, bradou Ares, “esqueceu que o coronel foi condenado ao Tártaro eterno? E ainda que pudesse tirá-lo de lá, apesar de eu não estar querendo mexer com o tio Hades, é melhor pegar leve. Pelo menos agora. Minha popularidade anda meio em baixa. Vou ligar pro Hermes”. “O Trismegisto?”, Fobos quis saber. “Claro que não, imbecil! Imagina se vou querer um egípcio dando pitaco nos meus domínios. Sem contar que esse sujeito não diz coisa com coisa…” “Verdade, ele é bem hermético”, anuiu Fobos. Ares, então, soltou um grito ensurdecedor e espetou a ponta de sua imensa lança na garganta do filho: “Deu para falar difícil agora, moleque? Por acaso virou assinante da Folha?”. Os dois irmãos ficaram paralisados, respectiva e redundantemente, de medo e terror. Mais pálidos que uma estátua esculpida por Fídias. Claro que o pai se referia a Hermes, o mensageiro dos deuses, pensou Deimos, e, para acalmá-lo, lembrou-lhe o sucesso dos twitters disparados por Hermes na campanha do Mar Egeu. “Ele vai resolver o problema rapidinho, o senhor vai ver”, disse por fim.
Hermes, de asas nos pés, de fato era tão ligeiro quanto solerte. Era meio-irmão de Ares pelo lado paterno. Também foi ele que ensinou a mentira aos homens, o que o tornava uma espécie de deus protetor das fake news; e, embora não tendo o mesmo espírito truculento de Ares, não perdia uma boa esparrela por nada deste mundo, nem do outro. Logo concebeu um plano perfeito. Com a ajuda de Hipnos, o deus do sono, que lhe devia alguns favores, engendraram um feitiço infalível aos inadvertidos leitores tracianos. A coisa era muito simples: contraído o feitiço o indivíduo seria incapaz de manter as pálpebras levantadas após abrir um livro, caindo no sono imediatamente. Ares, que nunca pegara um livro nas mãos e só assistia a filmes dublados, apesar de achar o estratagema bem água-com-açúcar para seus padrões sanguinolentos, aprovou-o sem maiores delongas.
Dizem que o plano funcionou durante um bom tempo, no qual o povo, destituído da possibilidade de ler, de obter conhecimento e de se informar de modo correto, voltou a apoiar bovinamente os desmandos daquela família estulta. A arte e as ciências foram esquecidas e as bibliotecas, fechadas. Até que a sábia deusa, que a tudo observava, resolveu intervir. Aliando-se ao nobre Perseu, de quem ganhara a cabeça da Górgona estampada em seu escudo, criou o primeiro acordo de cooperação mútua com uma nação não helenística.
E foi da Pérsia que chegaram os primeiros grãos de um fruto que, após infundido em água quente, tinha o poder de neutralizar o feitiço de Hermes. Uma grande campanha de imunização, batizada de “Acorda, Trácia”, espalhou-se por toda a região, chegando até os confins da Magna Grécia, onde, em Siracusa, conta-se que Arquimedes, após tomar uma dose da infusão, teria gritado: “eureka!”. Com essa expressão, talvez estivesse querendo dizer o eminente cientista (autor da obra O problema bovino) que, somente após a visão ser despida do véu embaciado da mentira forjada por um líder disfuncional, os homens enxergariam a verdade e compreenderiam que apenas a razão – esta, sim – estava acima de tudo. Ou, trocando em miúdos, que sem conhecimento os pobres mortais permaneceriam sempre cegos e sujeitos às patacoadas de qualquer demente no poder.
Segundo matéria assinada pelo primeiro repórter da história, Heródoto (não o Barbeiro), mais difícil do que convencer as pessoas da real eficácia do antídoto estava sendo driblar os infames ardis com os quais Ares e seus asseclas tentavam boicotar a campanha. Quanto trabalho, ó Zeus, para escapar da boçalidade do mito!
(*) Jurandir Renovato é jornalista e editor da “Revista USP”