ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no X Campo Grande News no Instagram
NOVEMBRO, SEXTA  22    CAMPO GRANDE 31º

Artigos

Deus? Reflexões sobre a fé em tempos de pandemia

Waldenyr Caldas (*) | 09/09/2020 09:16

Nesse interregno pandêmico em nosso cotidiano, onde boa parte da população foi compelida pela necessidade e o bom senso a ficar reclusa, confesso que, por motivos pessoais, como tantas outras pessoas, fiquei também um pouco recôndito e reflexivo. As experiências vividas por todos nós, permite-nos saber que quase sempre o isolamento nos leva a reflexões das mais pueris, até pensarmos seriamente em nossa própria existência.

É bastante provável que muitas cabeças no mundo, nesse momento, tenham passado por esse processo de reflexão e muitas outras ainda estejam a refletir sobre o que estamos vivendo. Aqui em nosso País, é mais fácil poder afirmar isso. Afinal, estamos acossados por uma pandemia agônica e devastadora que parece não cessar mais.

De acordo com a OMS, cientistas e especialistas em infectologia, este vírus não desaparecerá propriamente. Poderá, isto sim, diminuir sua agressividade e incidência, mas permanecerá entre nós. Seja como for, é algo muito assustador termos que conviver com um sinistro mensageiro da morte, ainda que debilitado.

Como tantas outras pessoas no mundo, vejo nossa liberdade de aproveitar a vida reprimida por um vírus extremamente virulento, oportunista e com fome de morte, que vem desafiando todo o conhecimento científico acumulado pelo homem até nossos dias. A ciência sabe muito pouco sobre ele.

Mas, não é uma “gripezinha” como disse nosso presidente que, logo depois de seu pronunciamento, também foi contaminado e constatou na prática, por experiência própria, seu erro de avaliação desse terrível inimigo público. As autoridades mundiais das organizações de saúde não se entendem, se contradizem, e a ressonância disso nos países é a desinformação acerca de um procedimento mais eficiente. Todos devem lembrar que, no início da pandemia, as instruções das autoridades era para que não usássemos máscaras. Depois de poucas semanas o aconselhamento era usar máscaras.

Atualmente, o uso delas é obrigatório e em alguns estados e cidades brasileiras ganhou até “status” de lei, sob pena de pesada multa para quem não o fizer. Ora, é claro que essas instruções desencontradas e desconectadas umas das outras, no caso do nosso país, criam uma situação de insegurança reforçada ainda em grande escala pelo poder Executivo do Estado, seguramente o maior aliado dessa pandemia.

Diante desse quadro nebuloso, surge a esperança de uma vacina ainda em fase de testes, mas com boas chances de tornar-se realidade em futuro próximo. Até lá, meu caro leitor, ficaremos na expectativa de dias melhores para sairmos do caos que nos foi imposto pelo imponderável.

É bem verdade que a Rússia já tornou sua vacina uma realidade. Mas, dividida sobre o assunto, parte da comunidade científica internacional recebeu com muita cautela essa notícia, usando o argumento de que os russos “pularam” etapas dos testes de eficiência da vacina que podem eliminar os eventuais efeitos negativos no corpo humano. Não é essa a interpretação dos cientistas russos.

O governo de Vladimir Putin está tão seguro do sucesso desta vacina, que já iniciou o processo de vacinação da população. Ao mesmo tempo, é preciso ver com cautela esta surpresa da comunidade científica internacional. Não se pode afirmar com certeza, mas lamentavelmente, tudo indica que esta conquista científica dos russos vem ganhando contornos políticos e mercantis.

Afinal, de uma forma ou de outra, a vacina russa certamente diminuirá a demanda de outras vacinas fabricadas no ocidente, o que não seria nada conveniente para as empresas empenhadas na produção de uma vacina. E mais: não podemos subestimar a vaidade de governantes de países poderosos do ocidente.

É bastante provável, por exemplo, que Estados Unidos, Inglaterra ou França, ficassem ainda mais orgulhosos de sua supremacia política e científica, do seu poderio econômico, ao serem os primeiros a apresentarem esta preciosa vacina para a humanidade. Esse acontecimento, sem dúvida, aumentaria ainda mais o “status” internacional de um desses países, não só entre a comunidade científica internacional, mas também junto a grande parte da população mundial.

Seja como for, é preciso ter em mente que a conquista russa é algo ainda bastante incipiente em face da magnitude planetária desta pandemia. O fato é que nesse momento, todos estão precisando de todos. A solidariedade precisa sobrepor-se à vaidade e à ganância mercantil. Tanto no ocidente quanto no oriente, pessoas estão sendo dizimadas diariamente.

Pois bem, mas diante da real e iminente ameaça de morte, em um misto de desespero, sofrimento e agonia por verem seus parentes e amigos sendo ceifados por um inimigo invisível que pode surgir a qualquer momento, de qualquer lado, em qualquer lugar durante as vinte e quatro horas do dia, as pessoas invocam a proteção de Deus. É o que resta a muitos milhões de seres humanos aflitos.

Com pouquíssimas exceções, as autoridades públicas já não merecem o crédito necessário nem mesmo para aliviar a angústia de quem espera a morte, ou a notícia sobre ela de um parente arquejante e asfixiado no leito do Hospital à espera de um respirador artificial para tentar postergar o dia fatal para sua vida ou, enfim, seu renascimento. É possível que o trabalho incessante dos cientistas em todo o mundo possa vir aliviar esse medo e essa angústia coletiva, com a criação da vacina capaz de extirpar este grande mal. Os russos parecem ter dado o pontapé inicial.

Assim que celebrarmos essa conquista o mundo poderá respirar aliviado. Enquanto isso não acontece, teremos que conviver com os limites de uma situação sobre a qual não temos controle, e procurar todas as formas de amenizar a expectativa dessa luta selvagem entre “Eros e Thanatos”, entre nosso corpo e este terrível inimigo invisível que representa a morte e nos ameaça a todos.

A crueldade deste cenário reaviva e torna mais presente a força das religiões, da crença, da onipotência e da onipresença de Deus. É a forma que as pessoas encontram para ter esperança, mas também a guarida contra o possível sofrimento e dor pela morte do seu ente querido. É a procura do consolo e até de um certo alívio, porque afinal, “Deus quis assim…”. É necessário entender e respeitar essa crença.

Immanuel Kant já nos alertava da necessidade moral de acreditarmos em Deus, e logo abaixo discutiremos essa questão. Embora reze a Constituição que o Estado brasileiro é laico, ou seja, oficialmente imparcial no tocante às questões religiosas, garantindo plena liberdade a todos os credos, a predominância em nosso país se faz pelo catolicismo. Para nós, não é mais só uma questão de religiosidade, ela é também cultural. Desde a mais tenra idade, já somos dirigidos no âmbito familiar a conhecer o credo católico e a reconhecer na figura de Deus, a autoridade suprema sobre todas as coisas.

É compreensível, portanto, que em momentos de dor e agonia, procuremos o consolo na figura deste ser supremo, entendendo que “Deus quis assim”. Esta é uma frase bastante recorrente entre pessoas quando perdem seus entes queridos. Algumas, às vezes até não verbalizam, mas se resignam pensando dessa forma. A decisão de Deus, nesse caso, serve de consolo para que a filha assimile a morte de seu pai, de sua mãe ou de qualquer um ente querido.

Deus, por ser onipotente e onipresente é, portanto, a única e legítima autoridade suprema que pode decidir, por exemplo, pela morte ou não, de qualquer pessoa se assim entender. Não por acaso, um provérbio da sabedoria popular, “o futuro a Deus pertence”, se tornou tão popular não apenas no Brasil, mas também em outros países. Ele é nada mais que um produto da Fé. Embora saibamos ser a morte um processo natural da vida, ainda assim, ela nos causa comoção, tristeza, sofrimento e dor. Mas, a força para superar esse momento está na proteção de Deus.

Esta crença plena e convicta na figura de Deus está presente em todas as religiões, desde os tempos mais remotos da civilização. Uma das melhores obras sobre esse tema é o livro de Richard Holloway, intitulado Uma breve história da Religião. Já o livro de John Hawkins, História das Religiões, não menos importante, dá conta de uma pesquisa muito bem realizada e analisa as conexões entre religião e filosofia enfatizando as origens e a evolução de religiões como o Islamismo, Cristianismo, Budismo, entre outras. Vamos comentar um pouco dessa trajetória, mas com o foco no binômio religião/filosofia.

Mesmo antes de Tales de Mileto e de outros filósofos pré-socráticos, como Empédocles e Demócrito, ou seja, quando ainda não havia propriamente o que se pode chamar de raciocínio filosófico, a prevalência da religiosidade restringia-se a uma espécie de visão mitológica do mundo. Os ensinamentos religiosos eram transmitidos de uma geração para outra baseada no que hoje se conhece como mito, cujo objetivo era narrar histórias de deuses para tomarmos consciência de que a vida só poderia ser mesmo como era e nada mais.

Não havia outras explicações. Parmênides (530 a.c. – 460 a.c.), por exemplo, acreditava que tudo o que havia no Universo sempre existiu e que nada poderia surgir do nada. E, apesar de todo o desenvolvimento e aprimoramento dos estudos filosóficos, da pesquisa científica e de outros saberes, os conceitos sobre a existência de Deus, ou da entidade Deus, permanecem da mesma forma que há 600 a.c., quando todas as explicações e crenças religiosas passavam pela ideia mítica de Apolo e Hera, Hefaistos e Dionísio, Zeus e Asclépio, Atena e Heracles, entre outros deuses míticos.

Por outro lado, não devemos atribuir aos filósofos a responsabilidade de explicar a existência de Deus. Aliás, mais do que sua própria existência, nos perguntamos: de onde veio Deus? Não se deve cometer nenhuma forma de injustiça, especialmente algo dessa magnitude. Deixemos os filósofos filosofarem, isto é primordial para a civilização, é o grande alimento e estímulo da alma. Até porque, não há mesmo como sabermos da existência ou não de Deus, tanto quanto de onde ele veio.

Mas, ainda assim, René Descartes (1596-1650), herdeiro do racionalismo de Parmênides foi mais longe que seu antecessor. O filósofo grego tinha consigo a certeza de que reside na razão humana o verdadeiro instrumento de conhecimento do mundo. Mesmo com toda essa convicção, Parmênides foi um dos muitos filósofos a defender que só nossa razão não seria suficiente para provar a existência de Deus. Heráclito (c.540-470 a.c), seu contemporâneo, vai nessa mesma direção, mas acrescenta que existe uma “razão universal” (em alguns momentos ele fala em “lei universal”) a qual todos nós devemos seguir.

Uma espécie assim do “imperativo categórico” de Immanuel Kant, quando formulava seu conceito de “lei moral”, ou seja, um conjunto de fatores éticos (ele chamava de “ética do dever”) e comportamentais indispensáveis para termos boa sociabilidade e interação social, enfim, para convivermos bem em sociedade. É claro que o conceito de “imperativo categórico” em Kant é multifacetado, é polissêmico, mas por enquanto, para este ensaio o que foi colocado acima parece ser o suficiente.

Já Heráclito, contemporâneo de Parmênides deixa de lado a palavra “Deus” e emprega o termo grego “logos” que significa razão. Ele acreditava na existência de uma “lei universal” segundo a qual todos os homens deveriam seguir, orientar-se, muito embora individualmente cada um de nós devêssemos nos guiar por nossa própria razão.

Bem mais tarde e em outro contexto histórico, afinal já vivíamos o período do Renascimento Cultural, René Descartes em suas reflexões sobre o “ser perfeito”, fala da existência de Deus. Para ele a perfeição não poderia ser algo criado pelo homem porque, afinal, somos imperfeitos e, como tal, a perfeição nos seria inacessível. Dessa maneira, só um ser perfeito poderia gerar outro ser igualmente perfeito. Pois bem, é nesse momento que Descartes justifica a existência de Deus na condição de um ser perfeito. Talvez em face da forte presença do cristianismo nessa época, pode-se perceber em suas reflexões, a ideia de onipotência e onipresença de Deus.

Assim, se temos a ideia do que venha a ser um ser perfeito, então estamos pressupondo que ele existe. Até porque, para o racionalismo cartesiano, como somos imperfeitos, a ideia de perfeição não poderia mesmo surgir entre nós. Quando este filósofo fala da alma, que para ele significa consciência pura, e da matéria que não possui consciência, está claro que esses elementos são provenientes de Deus. Afinal, só Deus como ser perfeito poderia criar algo harmonizando a alma e a matéria.

Para Immanuel Kant (1724-1804), no entanto, a Fé religiosa, a crença, implica necessariamente na existência de Deus. Isso se dá justamente no momento em que nem nossa razão, nem nossa experiência, ainda que agindo simultaneamente, seriam capazes de chegar a tal objetivo e explicar a Fé divina. Para ele, a não explicação, a falta de argumentos convincentes sobre a existência de Deus criaria um espaço para a Fé religiosa. A partir dessa situação, portanto, crer ou não crer na existência de Deus seria algo a ser deixado por conta da Fé do homem, ou seja, de cada um de nós. Quem tem Fé evidentemente acredita, quem não a tem não acredita.

De certo modo, protestante como era, Kant contemporiza as diferenças existentes no cristianismo entre o catolicismo, a ortodoxia e o próprio protestantismo. Se não podemos provar a existência de Deus com nossa razão e nossa experiência, resta-nos então deixar que a escolha do homem o conduza aos caminhos da sua Fé. Até porque se usarmos a razão veremos que a probabilidade da existência de Deus torna-se na mesma proporção, tão provável quanto improvável. Portanto, para se resolver esse impasse, significa que alguém ou alguma entidade possa realmente provar a existência de Deus. Convenhamos, uma tarefa sem a mínima chance de sucesso.

Sendo assim, e considerando as ponderações de Kant de que essa prova ainda não existe, prevalece então a proporção do improvável. Certamente diante dessa situação, ou seja, da impossibilidade de haver provas inequívocas da existência de Deus, é compreensível que uma parte nada desprezível da população opte por tornar-se agnóstica ou até mesmo ateia. O agnóstico, por exemplo, parte de uma premissa bastante sólida.

Ele considera impossível afirmar em bases cientificas, de forma categórica e insofismável a existência de Deus. É sem dúvida, um argumento forte, ponderado, que prefere acreditar na pesquisa científica e não no que dizem as mais diversas religiões. Não por acaso, a palavra “a-gnostos” de origem grega significa algo que não se conhece verdadeiramente. É um argumento forte, sustentado em bases sólidas e que nos faz pensar.

De outra parte, apenas para introduzir mais um elemento nessa discussão, como já é quase de domínio público, o ateísta nega peremptoriamente a existência de qualquer divindade. Para o ateu não existe nenhum um tipo de deus. Todo o ritual, toda a liturgia da Igreja Católica, por exemplo, entre outras religiões, em torno da figura de Deus, não passam de ficção engendrada por interesses voltados fundamentalmente para a conquista de poder, da manutenção do “status quo” e de interesses econômicos. Contemporaneamente, aliás, os ateus têm ainda mais subsídios para sustentarem sua tese. Isto porque, atualmente talvez nem devamos falar em religiões propriamente, mas em “mercado de ‘religiões’”. Este produto baseado na “Fé” tornou-se uma espécie de mercadoria à venda, como tantas outras na sociedade de consumo. Voltaremos a falar nesse assunto mais adiante.

Originalmente a palavra “atheos” também é grega e significa o abandono total da ideia de que existe um deus. Para alguns estudiosos deste tema, a negação da existência de Deus não se reduz apenas a uma descrença no que propagam as mais diversas religiões. Trata-se, antes de mais nada, de desacreditar que Deus tenha criado o Universo, que tenha o domínio sobre ele e que nós, habitantes da Terra, devemos nossa existência, nossa conduta, inteiramente a este ser superior.

A posição dos ateístas, em face dessas afirmações, me parece muito mais uma postura filosófica e muito menos uma contestação ao credo das religiões. Mas, essa posição ateísta, de uma forma ou de outra, ainda que tenha um caráter mais filosófico, respinga um pouco no universo das religiões que têm em sua base, em seu discurso principal, a existência e a crença em Deus.

Kant, no entanto, pondera acerca do ceticismo dos agnósticos e da posição consolidada dos ateus. Partindo do argumento de que existe um Deus, da imortalidade da alma e de que todos os homens têm direito ao que ele chama de livre arbítrio, então esses elementos tornam-se indispensáveis para a formação moral do homem. Independentemente da Fé, cabe a cada um de nós direcionarmos nossas escolhas de acordo com a razão e a experiência dos sentidos que nos norteia. Esses dois elementos são segundo Kant, os vetores imprescindíveis para que possamos ter verdadeiramente o conhecimento do mundo.

No entanto, diferentemente de Descartes, que acreditava na razão como elemento a nos conduzir a Fé, Immanuel Kant trilha outro caminho. Para ele foi a Fé e não a razão que o levou ao que ele chama de “postulado prático”, isto é, o conjunto de três elementos. São eles: a crença na imortalidade da alma, em Deus e em nosso livre arbítrio. Este último significa a possibilidade de escolhermos algo decorrente tão somente da nossa própria vontade, sem nenhum condicionamento ou interferência. Trata-se exclusivamente de uma escolha realizada pela vontade do homem. Kant usa a expressão “postulado prático” para explicar que algo deve se consolidar no que ele chama de “prática” do homem. O reflexo disso interfere em sua ação social e, por extensão, em sua moral. Não sem motivo, para Kant “é moralmente necessário supor a existência de Deus”.

Mas aqui, se nos ativermos um pouco mais sobre a análise desta celebre frase do filósofo prussiano de Konigsberg veremos que, diferentemente do que apresentam alguns escritos sobre sua crença na existência de Deus, é preciso ponderar que não se trata exatamente de acreditar ou desacreditar na existência de Deus. Ele não quis dizer nenhuma das duas coisas. Trata-se, isto sim, de “supor a existência de Deus” e, portanto, essa suposição em seu entendimento é moralmente necessária.

Sendo assim, para Kant, por uma questão moral supõe-se que Deus existe. Kant está apenas supondo que Deus existe, ele não está afirmando como fizeram tantos outros filósofos entre eles, Berkeley e Aristóteles, por exemplo, para quem Deus era a causa inicial de tudo, soberano e criador de todas as coisas.

Ainda assim, de concreto mesmo, se tivéssemos que procurar uma síntese no pensamento kantiano sobre a existência de Deus, diríamos que ele realmente acreditava ser impossível explicar essa existência por meio da razão como pensava Descartes. Para Kant, como já demonstramos acima, o único caminho para isso seria mesmo pela Fé. Em outros termos, este filósofo deixou muito claro que, ou você acredita que Deus existe e, portanto, isso significa a Fé, ou simplesmente não acredita e pronto, isto torna-se um fato consumado. De uma forma ou de outra, o problema está resolvido. Não há como explicar a existência de Deus cientificamente, nem pelos cânones da divindade. Está aqui presente um dos três elementos do “postulado prático” que ele chama de livre arbítrio. Você é livre para escolher sobre a existência ou inexistência de Deus.

Para Nietzsche, porém, esse é um falso dilema. Para ele, o cristianismo se distanciou da realidade terrena e concentrou sua doutrina na expectativa de que os fiéis cristãos abraçariam o catolicismo e, como reconhecimento por essa crença, por essa dedicação, após a morte ganhariam o céu. Convicto de suas posições acerca das religiões, Nietzsche acrescenta ainda às suas explicações: “Sede fiéis à Terra, e não acreditais naqueles que vos falam de esperanças além deste mundo!”

Pois bem, a partir desse momento, estamos diante de uma situação cuja explicação não é tão fácil aceitar ou, quando menos, entender. Estou pensando no binômio Fé/Deus. Quanto à Fé que, entre outras coisas, levou Kant considerar ser “moralmente necessário supor a existência de Deus”, há unanimidade entre as pessoas em aceitar esta palavra como um substantivo feminino abstrato. Mas, diferentemente da palavra Fé, há uma discussão muito grande com relação ao estatuto e a categoria gramatical da palavra Deus. Por esse motivo, temos que nos valer do sentido das palavras no nosso vernáculo, porque trata-se sobretudo de uma questão semântica a ser interpretada. Então vamos a ela.

Era de se imaginar que filólogos, linguistas e lexicólogos tivessem chegado a um consenso com relação à seguinte questão: a palavra Deus é um substantivo concreto ou abstrato? A resposta implica em sérias reflexões filosóficas, algumas questões religiosas e cria arestas para discussões que colocam em dúvida (no plano filosófico e não religioso) a existência de Deus. E assim, é claro, dicionaristas, filólogos e lingüistas, não chegaram a um consenso.

De acordo com os estudos semânticos, uma área da Linguística que estuda o significado das palavras, em determinadas situações esses significados podem ser interpretados de formas diferentes, justamente em face do contexto de comunicação naquele momento, mas também da sua interpretação léxica. A este fenômeno, os lingüistas chamam de “relação de sentido”. O que sabemos sobre toda a literatura a esse respeito é que, como os filósofos, os lexicólogos, filólogos e linguistas, de certo modo, filósofos da palavra, também não se entenderam acerca da existência de Deus.

Bem, mas até aí nenhuma novidade, mas também nada de grave. Permanecem então, duas diferentes interpretações, ou seja, a chamada “relação de sentido”. A desinteligência entre esses estudiosos, como já assinalei antes, passa pela categoria gramatical da palavra Deus. Para boa parte deles, Deus é um substantivo concreto. Como consta do prestigioso Dicionário Houaiss, inclui-se na subclasse dos nomes concretos. Não se trata de “uma ação, um estado ou uma qualidade, considerados independentemente da classe de objetos ou seres a que se refere”.

Esta é a explicação. No entanto, esse mesmo Dicionário levanta uma questão que diz respeito à ambigüidade dos substantivos concreto e abstrato. Quanto ao primeiro, não há dúvida. O substantivo concreto é reconhecido como algo que realmente existe e pode ser visto. Já o substantivo abstrato é considerado algo imaginário e não podemos ver. Nesses termos, portanto, trata-se de algo imaginário e não real.

Conclui-se dessas explicações, que o substantivo abstrato tem mesmo um estatuto imaginário. É dentro desse raciocínio, que boa parte dos estudiosos das mais diversas áreas do conhecimento defendem a inexistência de Deus. Para eles, a palavra Deus é considerada um substantivo abstrato, não pode ser visto e, portanto, é imaginário. Assim, se não quisermos classificar como substantivo abstrato, poderíamos chamar de “substantivo imaginário”, o que não mudaria absolutamente nada. Ainda assim, permaneceria gramaticalmente abstrato. Desnecessário seria dizer que essas divagações lingüísticas evidentemente não definem nada, nem no plano filosófico nem religioso. Elas apenas trazem uma substanciosa contribuição a mais para estimular o debate. Não podemos também esperar que esses estudiosos resolvam um enigma dessa magnitude.

Mas, diante desse quadro é preciso pensar nos fiéis da Igreja Católica e em sua incontestável convicção de que Deus existe. Para o católico, esta crença, esta Fé da qual nos fala Kant é tão forte, que interfere em seu cotidiano trazendo realmente prazer e felicidade em sua crença. Este é um fato incontestável e fácil de percebe-lo empiricamente. Curioso, porém, é se observar por exemplo, que até mesmo alguns ateus igualmente convictos da inexistência de Deus, já devem ter se surpreendido pronunciando alguns provérbios mundialmente conhecidos e frequentemente usados como, “graças a Deus”, “o futuro a Deus pertence”, por algum bom motivo.

Nesse caso, é claro, não se trata propriamente da crença na existência de Deus, mas de um hábito cultural. Até porque, os provérbios têm a propriedade de sintetizar aquilo que estamos pensando naquele momento, sem a necessidade de nos alongarmos em nossas explicações. É a linguagem da linha reta, clara e objetiva decodificada imediatamente por seu interlocutor. Portanto, se para o crente, seja qual for sua religião, as expressões “graças a Deus” e “o futuro a Deus pertence” pressupõem imediatamente a existência de Deus, para o ateu, elas não passam de provérbios utilitários para expressar-se objetivamente naquele momento.

Há que se pensar ainda no seguinte: frequentemente é possível se constatar que a discussão dos filósofos acerca da existência ou inexistência de Deus, fica mesmo circunscrita à explicação filosófica, ao plano filosófico. A discussão que faço aqui, evidentemente, não dá conta do que pensam todos os filósofos sobre essa questão e isso nem seria possível neste ensaio, entre outras coisas, por falta de espaço. Mas, pelo que aqui apresentamos, pode-se perceber convergências e divergências entre esses pensadores, o que é muito bom, porque enriquece ainda mais o debate sobre o tema. Nesse aspecto, portanto, é possível filosoficamente entendermos a figura de Deus, mas não sua existência ou inexistência, uma vez que Deus passa a ser algo etéreo, algo volátil, onde evidentemente, a mais racional das proposições e discussões não pode constatar sua existência ou inexistência.

No entanto, uma coisa é certa. Está claro que o Deus que os filósofos discutem sobre sua existência ou não, está muito distante do Deus e da imagem que a Igreja Católica dele criou. Diferentemente do que possam pensar os filósofos, para os religiosos de todo o mundo, a existência ou inexistência de Deus é um falso problema. Independentemente da religião, esses fiéis trazem consigo dentro d’alma os benefícios e a felicidade da crença no que Descartes chamou de “ser perfeito”, isto é, a figura de Deus. Os fiéis têm tanta certeza da existência de Deus que conseguem em seu cotidiano, incorporar sua “presença” e com ele “conviver” lado a lado diuturnamente.

Não raro, vemos e ouvimos um fiel falar: “tenho Deus aqui comigo”. Seus pedidos, alguns considerados impossíveis, em determinado momento podem acontecer e não se sabe de que forma isso ocorre, o que reforça ainda mais a crença e, consequentemente, a ideia difundida pela Igreja Católica da onipotência e onipresença de Deus. Em toda a literatura sociológica que conheço, não há (nem poderia haver) nenhuma explicação para situações como esta. Devemos reconhecer, portanto, que se isso realmente acontece, ou seja, se esses pedidos considerados impossíveis são atendidos, então isso significa o triunfo da crença, da Fé. Não consigo ver outra explicação que não essa. De concreto mesmo, é que os fiéis ficam felizes e isso os fazem ainda mais crédulo na existência de Deus. Bem, isso evidentemente, se for possível acreditar ainda mais do que já acreditam.

Por outro lado, lamentavelmente, em alguns países o conceito de religião tem cada vez mais ganhado um contorno muito mais mercantil do que propriamente uma opção que os fiéis possam fazer pela crença, pela Fé. No Estado laico esta situação é bastante recorrente. Por exemplo, é o caso do Brasil. Oficialmente, de acordo com nossa Constituição, não temos uma religião específica, e isso tem facilitado o aparecimento de outras religiões, ou ainda outras versões, outras interpretações do Catolicismo e de outras religiões. Claro, isto é plenamente aceitável, até porque não há nada de errado escolhermos a religião que bem nos convier e acreditarmos. Em um país democrático, há que se democratizar também a escolha pela Fé, pela crença.

É neste quadro polissêmico-religioso que as figuras de Deus e de Jesus Cristo adquirem um excepcional valor de troca, apenas para lembrar da expressão que Karl Marx usa quando escreve sobre o fetichismo da mercadoria. A laicidade do Estado permite por absoluta omissão e incompetência dos seus governantes, que algumas dessas Igrejas administradas por impostores da fé, pessoas burlistas, vendam aos fiéis a “salvação” da sua alma. Puro engodo, nada mais além disso. É um ato criminoso, crime de estelionato previsto no Código Penal Brasileiro. A pena prevista é de cinco anos de reclusão e multa, nos termos do artigo 171.

O ludibrio é um recurso espúrio que fere o estado democrático de direito. É certo que não enfraquece nossa democracia, claro, mas é certo também que essa ardileza explora de forma agressiva e inescrupulosa, a fé e a ingenuidade de pessoas humildes e desamparadas que procuram guarida nessas “igrejas” para minorar sua angústia, desamparo e sofrimento. Uma coisa é o estado ser laico, outra coisa é deixar correr solto o notório ludibrio contra um povo sofrido que procura um lenitivo na figura de Deus. Para isso, evidentemente, as pessoas que frequentam essas determinadas Igrejas, devem contribuir regularmente com certa quantia em dinheiro para ter a garantia de que salvará sua alma.

A não contribuição significa também a não garantia dos benefícios de salvação da sua alma. Por acreditarem que aquele pastor está falando em nome de Deus ou de Jesus Cristo, até porque eles se apresentam como representantes de Deus na terra, alguns fiéis mais crédulos não medem esforços para contribuir com a Igreja desse pastor e garantir seu lugar no céu. Importante esclarecer que o discurso do pastor fraudulento não é claro, direto e objetivo. Ele é cheio de meandros, trejeitos, grandiloquente e feito de forma sub-reptícia, mas o suficiente para que os fiéis entendam que devem deixar o seu dízimo de salvação da alma.

Então, nesse caso, o raciocínio para se constatar que a crença na existência de Deus tornou-se mercadoria é muito fácil. As pessoas, e não são poucas, ficam boa parte de suas vidas investindo dinheiro para futuramente, quando de sua morte, receberem seu espaço no céu. E aqui, é apenas com a morte dessas pessoas que elas poderão receber o benefício do valor de uso da mercadoria que compraram do pastor fraudulento, burlista. Há algo de muito dramático em tudo isso. As pessoas bem intencionadas e que podem pagar pela “salvação” da sua alma, passam a viver cada vez mais felizes porque afinal, têm “garantida” sua entrada no céu.

Elas acreditam fielmente nessa promessa e não há mais nada a se discutir, é um fato consumado. Para elas a existência e a crença na figura de Deus é algo absolutamente consolidado. São raríssimas as pessoas que percebem estarem sendo ludibriadas pelo pastor impostor, que tem sempre intenção oportunista e malévola, de usar a figura de Deus para seu enriquecimento ilícito.

Com pouquíssimas exceções, os veículos de comunicação de massa no Brasil, especialmente o rádio e a televisão estão repletos de pastores-locutores que usam a logomaquia como ardil, de pura má fé. Eles passam o dia inteiro fazendo pregações, discursos inflamados, se esgoelando com uma retórica fática, falando de Deus, de salvação da alma dos fiéis, mas sempre tentando convencer as pessoas a participarem de suas pregações na Igreja, justamente com o objetivo sub-reptício de uma futura “contribuição” em dinheiro.

É assim. O Catolicismo, lídimo representante do cristianismo ainda é a maior religião do ocidente, apesar das mais diversas interpretações que dela têm sido feitas e que, de certo modo, vêm fragmentando os postulados básicos deste credo e debilitando sensivelmente a Fé dos seus fiéis. E, mais do que isso, há que se considerar ainda os mais diversos casos envolvendo a sexualidade de uma parte do clero católico envolvido em pedofilia, espécie de perversão que torna a pessoa sexualmente atraída por crianças. Os casos dessa pedofilia clerical mais conhecidos, entre outros, aconteceram nos Estados Unidos, Austrália e Inglaterra.

Por conta disso, o Papa Francisco pronunciou-se publicamente para, em nome da Igreja Católica, pedir desculpas a todo o mundo. O caso de corrupção do Banco do Vaticano é outro acontecimento que ciclicamente volta aos noticiários dos veículos de comunicação de massa. É inegável que casos dessa magnitude têm mesmo que abalar os alicerces da Igreja Católica e isso certamente abalou a fé de alguns fiéis, incrédulos diante de um quadro tão desolador para um católico. Mas este é um outro estudo e entendo que ele deve ser realizado por pesquisadores interessados neste tema.

Seja como for, o fato concreto é que em todas as religiões a existência e a crença na figura de Deus permanece unânime e íntegra. Para esses fiéis, Deus é o senhor do Universo. Ele é o seu criador, organizou a trajetória dos bilhões de astros celestes, da Via Láctea, galáxia onde se localiza o sistema solar, do qual faz parte nosso planeta, harmonizou sua trajetória em torno do sol permitindo a luz solar se projetar sobre a terra, dando origem ao dia e a noite. Enfim, para os fiéis à existência de Deus, tudo o que existe no Universo origina-se da criação divina. Para a Igreja católica, por exemplo, a teoria científica do “Big Bang” que teria dado origem ao Universo, e a mais aceita entre a comunidade científica com algumas discordâncias, naturalmente, não passa de uma ficção bem construída pelos criativos cientistas.

Apenas para esclarecer, esta teoria é a mais aceita entre os astrônomos, físicos e cientistas de todo o mundo. Ela se baseia na célebre teoria da relatividade de Albert Einstein de 1905, e em pesquisas realizadas pelos astrônomos Milton Humason e Edwin Hubble. O Universo teria sua origem em uma grande explosão cósmica (Big Bang, em inglês) ocasionando a liberação de altíssima quantidade de energia e, por decorrência, a criação do que conhecemos hoje como espaço-tempo.

Para os cientistas, o Universo ainda continua em expansão e isso permite que cada vez mais galáxias e astros se distanciem. É claro que esta síntese aqui não poderia mesmo dar conta de um tema tão fascinante quanto complexo. Até porque, como não tenho evidentemente a pretensão de explicar a origem do Universo, então devo parar depois de ter dado essas explicações elementares. Meu objetivo é apenas fazermos ver a distância abissal que separa os conceitos e a concepção do mundo entre a religião e a ciência

Como resolvi escrever sobre um tema insolúvel e cuja resposta única não existe, reconheço que ele pode ser um pouco pesado e cansativo. Aliás, estou convicto de que não há nenhuma resposta. Me parece que Immanuel Kant tem razão. Crer ou não crer na existência de Deus, seria algo a ser deixado por conta da Fé de cada um de nós. Por isso mesmo é que quero finalizar registrando a presença do cancioneiro popular brasileiro e assim, sem fugir do assunto, apresentar o texto poético da canção de Chico Buarque, intitulada Partido Alto, composta em 1972, para o filme de Cacá Diegues, Quando o Carnaval Chegar.

Chico Buarque trata nesta canção de um problema social grave e crônico recorrente no Brasil, mas com a sutileza de um compositor reconhecidamente talentoso e refinado na elaboração das letras de suas canções. Ele sabe trabalhar o verbo, a palavra, a gramática, com rara habilidade, e é capaz de tratar de um tema doloroso como este, mantendo o humor bem característico brasileiro e, ao mesmo tempo, trazer à tona a crônica desigualdade social em nosso país. Reconheço nesse compositor, o grande mestre da palavra no cancioneiro popular brasileiro. Reproduzo o texto poético na íntegra, porque nele Deus está presente do início ao fim. Além disso, ter aqui a letra completa da canção ajuda o leitor a fazer sua própria análise e, mais do que isso, lhe dá elementos para analisar minha análise. Vejamos:

Diz que deu, diz que dá
Diz que Deus dará
Não vou duvidar, ó nega
E se Deus não dá
Como é que vai ficar, ó nega
Diz que Deus diz que dá
E se Deus negar, ó nega
Eu vou me indignar e chega
Deus dará, Deus dará

Deus é um cara gozador, adora brincadeira
Pois pra me jogar no mundo, tinha o mundo inteiro
Mas achou muito engraçado me deixar cabreiro
Na barriga da miséria nasci brasileiro
Eu sou do Rio de Janeiro

Jesus Cristo inda me paga, um dia inda me explica
Como é que pôs no mundo essa pouca titica
Vou correr o mundo afora, dar uma canjica
Que é pra ver se alguém se embala ao ronco da cuíca
E aquele abraço pra quem fica

Deus me fez um cara fraco, desdentado e feio
Pele e osso simplesmente, quase sem recheio
Mas se alguém me desafia e bota a mãe no meio
Dou pernada a três por quatro e nem me despenteio
Que eu já estou de saco cheio

Deus me deu mão de veludo pra fazer carícia
Deus me deu muitas saudades e muita preguiça
Deus me deu perna comprida e muita malícia
Pra correr atrás de bola e fugir da polícia
Um dia ainda sou notícia.

Ao longo de todo o texto poético, Chico Buarque faz um contraponto sobre as ações de Deus e a personagem da canção, mas com a leveza e o humor de quem tem sérias dúvidas se pode ou não, contar com a ajuda divina para resolver seus problemas. Diferentemente de grande parte das suas canções, Partido Alto tem um discurso claro, direto e objetivo.

As sofisticadas metáforas e outros recursos possíveis de serem usados do nosso vernáculo, na grande maioria das suas canções não estão presentes nesse momento, o que torna a intelecção do seu texto poético acessível a qualquer pessoa que o ler. Não se pode afirmar, mas é bastante provável que o uso nesta canção de uma linguagem coloquial e nada sofisticada, tenha mesmo o objetivo de mostrar certa desconfiança que os desvalidos economicamente têm em relação aos pedidos que fazem a Deus em suas orações. Na primeira estrofe da canção quando ele diz o seguinte:

Diz que deu, diz que dá
Diz que Deus dará
Não vou duvidar, ó nega
E se Deus não dá

Como é que vai ficar, ó nega…, está claro que o personagem parece não duvidar da ajuda de Deus. Mas, só parece mesmo. Logo em seguida e inseguro, ele admite a possibilidade de Deus não o ajudar e fica sem saber (“como é que vai ficar, ó nega”) o que fará se isso ocorrer, além de ficar indignado, não se sabe com quem, não está claro, mas provavelmente com Deus. Esse diálogo com sua “nega” é apenas o início de todo um desabafo que virá logo em seguida.

Na segunda estrofe o personagem se refere a Deus, mas não o trata como a Divindade Suprema, ritual que fazem todos os religiosos. Ao contrário, trata-o como se ele fosse apenas uma pessoa a mais de seu relacionamento, e como se já o conhecesse bem para saber de suas ações. Para ele, “Deus é um cara gozador, adora brincadeira”. Entre todas as oportunidades que o Senhor teria para colocá-lo no mundo, parece ter optado pela pior delas, senão uma das piores (“pois pra me jogar no mundo, tinha o mundo inteiro”), ou seja, sem condições de prover sua própria vida e ter que contar com a ajuda divina. É a partir desse momento, que o personagem da canção de Chico inicia seu descontentamento com Deus, enumerando uma série de situações que o deixam cabreiro, desconfiado, assustadiço e que não gostaria de estar vivendo. Destaque-se entre elas, por exemplo, o fato de já ter nascido como mais um brasileiro miserável: “na barriga da miséria nasci brasileiro”.

Como já disse antes, o texto é de fácil intelecção, objetivo, mas na mesma proporção impactante e capaz de causar inquietação ao ouvinte de Partido Alto. No entanto, diferentemente da grande maioria das pessoas, o personagem da canção reage por ter sido colocado na “barriga da miséria” quando, com um pouco de boa vontade, Deus poderia ter sido mais compreensivo e solidário, dando-lhe condições para sair do estado de carência quase absoluta dos meios de subsistência.

Nesse momento, ele se faz uma pergunta que também é extensiva à sua “nega”: “…E se Deus não dá, como é que vai ficar, ó nega…”. Normalmente não é essa a postura dos fiéis, daquelas pessoas para quem Deus é o Senhor do Universo e, portanto, “seja feita a sua vontade”, como manda a oração do Padre Nosso. Para os fiéis não se questiona jamais o que Deus decide, o que ele faz, apenas aprova-se e aceita-se com muita gratidão.

Já na terceira estrofe seu descontentamento é com Jesus Cristo, de quem espera um dia receber alguma forma de pagamento e explicações por ter sido colocado no mundo apenas como “pouca titica”, isto é, pessoa insignificante, desprezível. Mas logo em seguida, ele volta novamente a mostrar seu descontentamento com Deus que o fez “…um cara fraco, desdentado e feio, pele e osso simplesmente, quase sem recheio…”, mas bom de briga e de pouca paciência, fica facilmente de “saco cheio”. Ao mesmo tempo, talvez por sentir-se desamparado, ele resolve assumir seu lado libertário pela vida e decide “…correr o mundo afora, dar uma canjica…” para motivar as pessoas com o som, com o “ronco da cuíca…”.

E, finalmente, na última estrofe da canção a personagem reconhece que Deus o colocou no mundo em uma situação muito difícil de se viver. Por exemplo, a frase “Deus me deu mão de veludo pra fazer carícia”, embora dê margem a diversas interpretações, vamos ficar apenas com aquela que parece sugerir o texto poético de Partido Alto. Isto porque, no ethos cultural do malandro carioca, na linguagem coloquial, na gíria do seu cotidiano, “mão de veludo” significa ter muita habilidade, atenção, esperteza, sutileza e até certa “carícia” para pilhar os incautos, os imprecatados. Os desavisados.

Mas Deus também deu outros recursos ao personagem desta canção para tentar driblar a miséria, ainda que para isso permaneça à margem da sociedade. A “preguiça”, a “perna comprida e muita malícia”, são recursos dos quais precisa usar para “fugir da polícia”. Sua maior oportunidade é “correr atrás de bola” na esperança de que um dia um clube de futebol, brasileiro ou não, reconheça seu eventual talento e o contrate. Aí sim, ele passará a ser notícia como é o seu desejo.

Esta leitura de Partido Alto, é apenas uma a mais. A obra musical e literária de Chico Buarque é bastante estudada nas universidades por professores e alunos e, sendo assim, certamente existem diversas outras leituras que poderiam ajudar ao leitor interessado em esmiuçar um pouco mais a relação do binômio Deus/malandro. Mas não é só. Dentro da própria canção, além de Deus/malandro, existem outras vertentes em seu texto poético que podem ser estudadas.

O crítico italiano Umberto Eco, em seu trabalho Obra Aberta, ao teorizar sobre a linguagem poética nos deixa à vontade para interpretarmos não apenas a linguagem literária da prosa e da poesia, mas qualquer obra de arte. Vale para a literatura, a música, as artes plásticas ou qualquer outra modalidade artística. Para este teórico, a obra de arte traz consigo uma estrutura de conteúdo e proposições que a torna sempre aberta, ou seja, sempre passível de mais uma leitura. Isto significa, em outros termos, que pudemos interpretá-la sem o temor de que estamos fazendo de forma errada.

Este livre arbítrio que temos para interpretar como bem entendermos é de relevante importância uma vez que, quanto maior o número de leituras sobre uma obra, mais conheceremos seus meandros e sutilezas. Isso não significa, evidentemente, que afinal conseguimos entender as proposições do artista ao realizar aquela obra. Aliás, isso nem é algo tão importante no contexto de sua obra. Se como diz o crítico inglês Ezra Pound, “o artista é a antena da raça”, é provável que este artista de quem estamos interpretando sua obra, já tenha outra concepção sobre aquela obra analisada. Assim, a próxima interpretação que se fizer de Partido Alto, continuará sendo uma leitura a mais que se seguirá de outras mais. Isso é bom.

Por um lado, uma coisa é certa: o enigma da existência ou inexistência de Deus, é algo que divide opiniões. Seja na letra de uma canção, como é o caso de Partido Alto, na literatura, em uma peça de teatro ou no cotidiano das pessoas. Não há nenhuma chance de haver um consenso por mais que filósofos, cientistas, crentes, agnósticos, ateus, entre outros, discutam exaustivamente sobre este tema.

Por outro lado, é incontestável que se Deus existir realmente, na concepção de um Deus da Igreja Católica, ele tem demonstrado ser sobretudo muito democrático. Isto porque, deu ao homem a capacidade de saber analisar, criticar e escolher o que quer ser. Se crente para venerá-lo, se agnóstico para optar pela ciência, ou se ateu para desconsiderá-lo inteiramente. Ainda bem, se esta liberdade do homem para criticá-lo e até contestá-lo democraticamente, é de fato, obra de Deus, então as coisas se ajustam no plano do bom senso. É verdade, porém, que crentes sempre reagem energicamente e ocasionalmente até brigam com agnósticos e ateus quando falam de suas opções. O problema é que retornamos a uma situação recorrente.

Os agnósticos, com razão, dizem que não há nenhuma prova dessa existência divina e, por decorrência, da liberdade dada ao homem para analisar criticamente essa divindade. Enfim, desisto. Não há mesmo solução. Mas, de uma forma ou de outra, em existindo Deus, é o caso de pedir aos que acreditam em sua existência, que ele seja mais solidário aos miseráveis, aos desvalidos, aos desamparados, para quem a morte já se tornou melhor que a vida. O personagem de Partido Alto e outros milhões de esquecidos ficarão felizes se esse pedido for atendido.

(*) Waldenyr Caldas é professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP.

Nos siga no Google Notícias